Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
[email protected]

As estranhas forças por trás do filme “O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus”

 

“Existem forças em ação nesse filme. Referências sobre a morte estavam no roteiro original e isso para mim é que é assustador”, disse o diretor Terry Gilliam sobre o filme mais estranho da sua carreira, “O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus” (2009). Foi marcado para sempre pela morte de Heath Ledger no meio da produção do filme, após atuar vivenciando dois fortes arquétipos ocultistas: o “Joker” no filme “Batman” e o “Enforcado” no filme de Gilliam. Ironicamente a morte de Ledger confirmou o forte niilismo gnóstico presente em “Dr. Parnassus” e mantido na sua última produção “O Teorema Zero” (2014): um ex-monge budista faz sucessivas apostas com o Diabo desde tempos imemoriais – o Bem e o Mal vistos como entidades reversíveis, onde um precisa do outro para manterem-se relevantes. E os personagens (e todos nós) seriam meras peças inocentes e prisioneiras de um jogo que se confunde com a própria eternidade.  

A tradicional câmera inquieta com pontos de vista delirantes com lentes grande angulares que deformam a perspectiva, criando atmosferas grotescas, é a marca registrada do ex-integrante do grupo Monty Python Terry Gilliam. Tudo isso para realçar um tema recorrente do diretor: heróis que através da força da imaginação e da fantasia conseguem enfrentar e vencer realidades opressivas.

 Mais uma vez, no filme O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus, estão presentes esses elementos narrativos. Mas há algo mais que tornou esse filme de Gilliam estranho e misterioso. O filme começa com um homem vestido como Mercúrio (ou Hermes dos gregos ou Toth dos egípcios) anunciando a entrada do Dr. Parnassus, um monge segurando uma flor de lótus, símbolo do misticismo oriental.

Essa atmosfera misteriosa ainda se completa quando sabemos que no meio da sua produção o ator Heath Ledger (o Coringa de Batman, O Cavaleiro das Trevas) morreu de uma overdose acidental de medicamentos. Se no filme anterior Ledger havia representado o Coringa, personagem arquetípico carregado de forte simbolismo oculto, no filme de Gilliam o ator assume outro forte arquétipo, o do Enforcado – seu personagem é encontrado pendurado em uma ponte após Parnassus retirar a carta correspondente do Tarot.

 Além disso, Gilliam rompe com o dualismo ou maniqueísmo que sempre marcaram suas narrativas – o protagonista puro e inocente contra um mundo opressor e corrompido. Pelo contrário, nesse filme vemos uma visão do Bem e do Mal como entidades reversíveis, como dois lados de uma mesma moeda que travam um jogo eterno onde os personagens inocentes são meras peças de uma aposta que se confunde com a eternidade.

Veremos como Terry Gilliam, dessa maneira, insere-se numa tradição herética como a dos gnósticos maniqueos e cátaros que pensavam o Bem e o Mal ao mesmo tempo como irreconciliáveis e equânimes: não há pureza e sabedoria que não resultem no seu inverso (a corrupção), assim como não existe perfídia e maldade que não motivem a existência do seu inverso – a bondade e fé.

O Filme

Dr. Parnassus (Christopher Plummer) foi um monge budista em tempos imemoriais e vive há milhares de anos. Ele é o mestre de cerimônias de um velho show itinerante decadente com figurinos vitorianos brilhantes e relíquias de várias épocas. Os poucos espectadores que pagam para assistir ao show podem atravessar um espelho mágico onde  encontram um mundo onírico onde realizam desejos e fantasias mais íntimas, e têm a oportunidade de escolher entre a luz e as trevas, entre a alegria e a melancolia.

Embora abençoado por esse dom de guiar a imaginação das pessoas, Dr. Parnassus é assombrado por um segredo sombrio: Há muito tempo ele fez uma aposta com o próprio Diabo em pessoa, Mr. Nick (Tom Waits, perfeito no papel) e acabou ganhando a imortalidade como prêmio. Mais tarde, ao encontrar seu grande amor, Parnassus faz novo acordo com Mr. Nick, trocando sua imortalidade pela juventude, sob a condição de que quando seu primogênito completasse 16 anos, a alma dele ou dela se tornaria propriedade do Diabo.

Sua filha Valentina (Lily Cole) está prestes a completar seus 16 anos e Parnassus se desespera procurando uma forma de evitar o destino eminente. Mr. Nick aparece para cobrar, mas ele está sempre disposto a fazer novas apostas. Renegocia a promessa: dessa vez o vencedor será aquele que converter cinco almas. Parnassus tentará usar seu espelho mágico para atrair uma galeria de personagens que precisam ser regenerados – bêbados, mulheres consumistas e bandidos mafiosos.

Nesse meio tempo, a trupe do Dr. Parnassus encontra um homem pendurado em uma forca numa ponte em meio à noite chuvosa. Seu nome é Tony (Heath Ledger) e possui estranhos símbolos de magia negra desenhados em sua testa. É encontrado ainda vivo, e desperta sem lembrar quem é e como parou naquela forca.

Incluído na trupe, Tony se mostra hábil em trazer espectadores para o show de mágicas do Dr. Parnassus – mas sempre através de pequenas mentiras ou falsas promessas. Com mais espectadores, Parnassus tem a chance de conquistar as cinco almas para vencer a aposta com o Diabo. Cada vez mais o filme se passa no universo onírico atrás do espelho onde se inicia uma surreal corrida contra o tempo onde o Bem e o Mal, Parnassus e Mr. Nick disputarão palmo a palmo cada alma dos incautos espectadores.

O que está por trás dos simbolismos?

Fica claro que o enredo gira em torno do tema clássico de Fausto, no qual Dr. Parnassus faz diversas apostas com o Diabo ao longo da vida. Sobre esse tema, Gilliam construiu camadas e camadas de simbolismos esotéricos e ocultistas como pirâmides, a escada para as nuvens, o rio que conduz à vida eterna, o palco do Imaginarium do Dr. Parnassus em xadrez tridimensional maçônico, os simbolismos de magia negra desenhados na testa de Tony etc.

Enquanto isso, a inocente Valentina (alheia ao seu terrível destino) folheia uma revista de decoração onde vê fotos de uma família perfeita, desejando uma vida melhor pelos parâmetros da sociedade de consumo, assim como os espectadores do show do Dr. Parnassus. Gilliam parece nos dizer que todos esses simbolismos e imagens de consumo escondem uma realidade mais profunda. São apenas formas de nos distrair de uma realidade fundamental: o Bem e o Mal jogam constantemente e somos apenas joguetes nessas partidas sem fim.

Isso fica evidente quando Mr. Nick desdenha os simbolismos da testa de Tony. “Nunca me envolvi com essa coisa de magia negra… Nunca fui muito bom nisso”, diz o próprio Diabo. Para Dr. Parnassus e Mr. Nick, todos os simbolismos são apenas iscas para captar a atenção das pobres almas que caem nos seus jogos e apostas.

O niilismo de Gilliam (que fica ainda mais acentuado no seu próximo filme O Teorema Zero – sobre o filme clique aqui) parece se associar ao dualismo da tradição de Zoroastro e Mani: o cosmos vive a Queda desde a sua criação pela profunda cisão entre o Bem e o Mal. Porém, um precisa do outro para existirem e manterem-se relevantes. Por isso tudo é reversível.

Fica evidente no filme como ada ato resulta em um efeito perverso: Tony era responsável por uma ONG filantrópica que transformou-se em instrumento de lavagem de dinheiro de mafiosos russos; o amor de Parnassus pela sua filha converte-se em objeto de aposta; todo amor, inocência e pureza reverte-se no seu oposto. E o Diabo jamais quer uma vitória final – penalizado ao ver Dr. Parnassus derrotado, sempre propõe uma nova aposta. Parnassus é um jogador compulsivo, enquanto o Diabo quer manter a Banca.

O niilismo de Terry Gilliam é cruel: não importa qual a escolha que as pessoas façam no mundo do espelho do Imaginarium do Dr. Parnassus (seja a iluminação ou a ignorância, seja uma escada para o céu ou um pub), todas as opções se igualam no gigantesco jogo cósmico no qual estamos prisioneiros.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Wilson que tal analisar a Babilônia dos Irmãos Marinho

    Vem por ai muito ódio e hipocrisia jorrando da telinha dos Irmãos Marinho contra um ‘político de origem humilde’ mas que, segundo o enredo(da novela Babilônia), teria palácios, fazendas, triplex e aviões ocultos…A Globo sabe muito bem usar da semiótica e de discursos subliminares para manipular essa massa de analfabetos digitais…o Wilson Ferreira, especialista em comunicação poderia nos explicar o que há por trás da novela Babilonia em termos de manipulação de massas, se bem que a própria emissora assume sua estratégia novelesca como instrumento de disputa pelo poder. Uma novela para o juiz tucano chamar de sua: Deu no insuspeito Globo…

    Marcos Palmeira acha que ‘dessa vez os criminosos serão punidos’

    Desanimado com a política, Marcos Palmeira espera ser odiado no papel de prefeito corrupto em ‘Babilônia’

    Na novela, ator é político que finge ser humilde, mas ostenta luxo longe dos olhos de seus eleitores

    POR GABRIEL MENEZES

     

    RIO – Marcos Palmeira espera provocar indignação no público com o seu papel na nova novela das 21h da TV Globo, ‘Babilônia’, que estreou na última segunda. O ator será Aderbal Pimenta, prefeito da cidade fictícia de Jatobá, que leva uma vida dupla. Enquanto para seus conterrâneos se mostra humilde e sempre disposto a ajudar a todos, ele também leva uma vida de luxo e ostentação na Barra da Tijuca, onde possui uma casa.

     

    – Estou muito feliz, acho que é um personagem atual. Quero mostrar que nem todos são o que demonstram ser, principalmente na política. Uma coisa é o que se fala e a outra, o que se faz nos bastidores para se beneficiar – diz.

    Para Palmeiras, a novela aborda a corrupção da mesma maneira que “Vale tudo (1988)”, mas dessa vez ele acha que o desfecho será outro:

    – Ando desanimado com o momento atual do país. Enquanto não houver investimento sério em educação, pouca coisa vai melhorar. De qualquer forma, o cenário já é outro daquele que foi retratado em “Vale tudo (1988)”. Marco Aurélio (Reginaldo Faria) fugiu dando uma banana para o Brasil, mas, dessa vez, acho os criminosos serão punidos – afirma.

    Escrita por Gilberto Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga, “Babilônia” tem direção geral e de núcleo de Dennis Carvalho e direção geral de Maria de Médicis.

    – Voltar a trabalhar com o Gilberto depois de mais de 10 anos é um grande prazer – diz Palmeira, cujo o último trabalho com o autor foi a novela “Celebridade (2003)”.

     

    http://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/desanimado-com-politica-marcos-palmeira-espera-ser-odiado-no-papel-de-prefeito-corrupto-em-babilonia-15476889

     

  2. Bem x Mal

    Parnassus é um jogador compulsivo, enquanto o Diabo quer manter a Banca.

    A divisão Bem x Mal pode ser uma ilusão, mas com certeza essa frase, perfeita, resume bem o que acontece.

    Parabens pelo texto.

     

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador