Nova versão de “Total Recall” neutraliza visões de K. Dick

 

A versão atual de “O Vingador do Futuro” (Total Recall, 2012) à primeira vista parece ser mais fiel ao conto de Philip K. Dick ao adotar uma narrativa mais séria, grave e sombria do que o original de 1990 de Paul Verhoeven. Mero engano. Como é possível um filme hollywoodiano assumir a virulência de um escritor que denunciava conspirações cósmicas e pregava a revolta contra sistemas autoritários de controle em nome de ideais ocultistas e esotéricos? Por meio de sutis estratégias que neutralizam as visões radicais de K. Dick permitindo ao espectador voltar para a sua rotina como se nada tivesse acontecido depois que as luzes do cinema forem acesas.

Desde que o escritor norte-americano Philip K. Dick atendeu à campainha da sua casa em março de 1974 e surgiu uma menina de entrega de uma farmácia usando um delicado colar de onde pendia um peixe dourado, sua vida nunca mais foi a mesma. Se desde a década de 1950 K. Dick escrevia livros e contos sobre conspirações cósmicas, universos paralelos, amnésia, paranoia, estados ambivalentes entre a realidade e ilusão e revolta contra sistemas autoritários de controle, essa prosaica experiência de atender a uma entrega confirmou tudo o que imaginava: viu um raio cor de rosa sair do peixe (símbolo do Cristianismo primitivo) e atingi-lo na região do terceiro olho (sobre esse episódio da gnose do escritor veja links abaixo).

A partir daí, o tecido da realidade se esgarçou para K. Dick que passou a vislumbrá-la como um constructu a partir de memórias artificiais implantadas em cada um de nós: descobriu em uma espécie de epifania religiosa que seu verdadeiro eu estava em uma realidade alternativa, arquetípica, negada pela artificialidade dessa realidade.

O conto “We Can Remember it for You Wholesale” (“Recordações por Atacado”) publicado em 1966 é um dessas visões de K. Dick sobre a fragilidade da noção de realidade (como escreve no conto “um conjunto de reações bioquímicas do cérebro estimuladas por impulsos visuais”). Após o grande sucesso de “Blade Runner – O Caçado de Andróides” de 1982, baseado em um livro de K. Dick (Do Androids Dream of Eletric Sheeps?), Hollywood interessou-se pelos insights assumidamente gnósticos do escritor.

O filme “O Vingador do Futuro” (Total Recall, 1990) com Schwarzenegger foi a segunda incursão da indústria hollywoodiana no imaginário de um escritor que teve ligações com o Partido Comunista norte-americano e investigado pelo FBI e serviços secretos durante a Guerra Fria. “Blade Runner” de Ridley Scott sofreu cortes na versão comercial, retirando da narrativa a ambiguidade crucial do protagonista: ele também poderia ser um replicante e suas memórias artificiais.

Em “Total Recall” de 1990 dirigido por Paul Verhoeven (“Robocop”) todo o radicalismo do conto “Recordações por Atacado” está lá, porém em um tom narrativo que beira o gênero “camp” (gênero relacionado ao Kitsch onde o banalidade, artifício e mediocridade são propositais para conseguir um efeito humorístico) em muitos momentos. O filme não se levava a sério, em um tom relaxado e com sequências hilárias.

A refilmagem de “Total Recall” pelo diretor Len Wiseman pretende ser mais séria, grave, sombria, na melhor escola narrativa dos filmes de Christopher Nolan. Poderíamos, então, afirmar ser esta uma versão mais fiel ao tom emergencial do conto de K. Dick do que na versão de 1990? Puro engano. Hollywood mantém firme as amarras da realidade, mesmo em um filme que pretende colocá-la sob suspeita. Primeiro, reduzindo a gnose do protagonista a uma espécie de autoconhecimento motivacional na melhor tradição dos livros de autoajuda. E, segundo, ao deixar uma suspeita no ar para o espectador de que toda a rebelião do protagonista, afinal, poderia ter sido um mero devaneio ou sonho.

Os sonhos e a rotina

Primeiro uma breve sinopse. Em um mundo futuro onde a Terra foi devastada por uma guerra bioquímica mundial, restaram apenas duas regiões habitáveis: a Federação Unida da Bretanha e a Colônia (antiga Austrália), do outro lado do planeta. Ligando os dois Estados-nações um túnel chamado “A Queda” que cruza o núcleo do planeta. Na verdade, um instrumento de dominação e exploração econômica ao qual se submete a Colônia.

Douglas Quaid (Colin Farrell) é um operário de classe média baixa que trabalha em uma linha de montagem de androides. À noite tem estranhos sonhos recorrentes onde é um agente secreto com uma missão importante, o que contrasta com a sua rotina maçante de uma vida medíocre. Comparado com a versão de 1990, na versão atual a mediocridade da vida do protagonista é bem desenvolvida com linhas de diálogo como essa: “Passo o dia todo distraído… tenho todo dia sonhos que faço algo importante… diferente da minha vida. Atravessamos o mundo para fazer um trabalho de merda, por salários de merda, para vir a este bar de merda para ficar bêbado!” Uauu! Milhares de espectadores poderão se identificar com o protagonista.

Mas tudo sai da rotina até Quaid receber uma proposta de uma empresa chamada Rekall que implantará memórias em seu cérebro para ter as melhores férias da sua vida onde finalmente viverá sua fantasia de ser um agente secreto e fugir da rotina entediante. Mas tudo dá errado quando passa a ser perseguido pela polícia lutando ao lado dos rebeldes que querem libertar a Colônia da exploração. Será tudo real ou efeito das memórias implantadas?

Quaid terá que juntar as pistas que revelarão na verdade quem ele é, sua verdadeira identidade. Tanto os espectadores como o protagonista não saberão se a identidade de Quaid é mais uma memória artificial que estaria entrando em choque com as novas memórias fabricadas pela Rekall ou se, na verdade, Quaid é de fato o líder dos rebeldes na vida real.

O mal estar de Quaid com a rotina de dominação e exploração associada à perda da própria identidade é um típico tema de Philip K. Dick: a condição humana de prisioneiro em um mundo cuja realidade é uma ilusão fabricada por um Estado (o Demiurgo) de controle e engenharia social. Mas Hollywood neutraliza esse tema potencialmente incômodo ao espectador: afinal as luzes do cinema irão acender e ele voltará, certamente, para uma rotina parecida com a de Douglas Quaid.

Estratégias de neutralização

Primeira estratégia de neutralização: linhas de diálogo fiéis ao conto de K. Dick (questões metafísicas e existenciais) estão espalhadas aqui e ali em meio a muitas perseguições, tiros, explosões e sopapos. Por exemplo, a esposa de Douglas Quaid, Lori (Kate Beckinsale) revela-se uma policial que passa a perseguir implacavelmente o marido. De repente vemos os clichês do filme “Sr e Sra Smith” (2005) com Brad Pitt e Angelina Jolie onde marido e mulher descobrem que são espiões rivais e tentam matar um ao outro. Sem falar nas ironias feitas por Quaid sobre a vingança de mulheres que se divorciam e TPM…

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