Desde que o escritor norte-americano Philip K. Dick atendeu à campainha da sua casa em março de 1974 e surgiu uma menina de entrega de uma farmácia usando um delicado colar de onde pendia um peixe dourado, sua vida nunca mais foi a mesma. Se desde a década de 1950 K. Dick escrevia livros e contos sobre conspirações cósmicas, universos paralelos, amnésia, paranoia, estados ambivalentes entre a realidade e ilusão e revolta contra sistemas autoritários de controle, essa prosaica experiência de atender a uma entrega confirmou tudo o que imaginava: viu um raio cor de rosa sair do peixe (símbolo do Cristianismo primitivo) e atingi-lo na região do terceiro olho (sobre esse episódio da gnose do escritor veja links abaixo).
A partir daí, o tecido da realidade se esgarçou para K. Dick que passou a vislumbrá-la como um constructu a partir de memórias artificiais implantadas em cada um de nós: descobriu em uma espécie de epifania religiosa que seu verdadeiro eu estava em uma realidade alternativa, arquetípica, negada pela artificialidade dessa realidade.
O conto “We Can Remember it for You Wholesale” (“Recordações por Atacado”) publicado em 1966 é um dessas visões de K. Dick sobre a fragilidade da noção de realidade (como escreve no conto “um conjunto de reações bioquímicas do cérebro estimuladas por impulsos visuais”). Após o grande sucesso de “Blade Runner – O Caçado de Andróides” de 1982, baseado em um livro de K. Dick (Do Androids Dream of Eletric Sheeps?), Hollywood interessou-se pelos insights assumidamente gnósticos do escritor.
O filme “O Vingador do Futuro” (Total Recall, 1990) com Schwarzenegger foi a segunda incursão da indústria hollywoodiana no imaginário de um escritor que teve ligações com o Partido Comunista norte-americano e investigado pelo FBI e serviços secretos durante a Guerra Fria. “Blade Runner” de Ridley Scott sofreu cortes na versão comercial, retirando da narrativa a ambiguidade crucial do protagonista: ele também poderia ser um replicante e suas memórias artificiais.
Em “Total Recall” de 1990 dirigido por Paul Verhoeven (“Robocop”) todo o radicalismo do conto “Recordações por Atacado” está lá, porém em um tom narrativo que beira o gênero “camp” (gênero relacionado ao Kitsch onde o banalidade, artifício e mediocridade são propositais para conseguir um efeito humorístico) em muitos momentos. O filme não se levava a sério, em um tom relaxado e com sequências hilárias.
A refilmagem de “Total Recall” pelo diretor Len Wiseman pretende ser mais séria, grave, sombria, na melhor escola narrativa dos filmes de Christopher Nolan. Poderíamos, então, afirmar ser esta uma versão mais fiel ao tom emergencial do conto de K. Dick do que na versão de 1990? Puro engano. Hollywood mantém firme as amarras da realidade, mesmo em um filme que pretende colocá-la sob suspeita. Primeiro, reduzindo a gnose do protagonista a uma espécie de autoconhecimento motivacional na melhor tradição dos livros de autoajuda. E, segundo, ao deixar uma suspeita no ar para o espectador de que toda a rebelião do protagonista, afinal, poderia ter sido um mero devaneio ou sonho.
Os sonhos e a rotina