O País das Maravilhas 150 anos depois em “Alice”

Como seriam o País das Maravilhas e Alice 150 anos depois? Certamente mais violentos:  ela, faixa preta em karatê e a Wonderland um reino onde o castelo da Rainha é substituído por um cassino de onde comanda um esquema de rapto de seres humanos para que suas emoções sejam drenadas  e transformadas em matéria-prima para a produção de drogas. Essa é a versão atualizada do clássico de Lewis Carroll escrita e dirigida por Nick Willing, numa minissérie em dois episódios. Uma surpreendente combinação da distopia pós-moderna com uma clássica narrativa a partir da mitologia gnóstica.

A minissérie para TV “Alice” (2009) é mais uma adaptação de clássicos feita por Willing como na produção anterior “Tin Man” de 2007 (“Homem de Lata”, baseado no “Mágico de Oz”) e atualmente, em fase de pós-produção, a minissérie para TV “Neverland”, uma adaptação de Peter Pan.

A protagonista Alice de Willing  (Caterina Scorsone) não é mais uma jovem garota inglesa, mas agora uma jovem na faixa dos 20 anos professora de karatê e que mora nos Estados Unidos. Tudo começa quando o seu namorado  Jack Chase (Philip Winchester) é estranhamente sequestrado. Alice persegue os sequestradores até o interior de um escuro galpão abandonado até dar de encontro com um espelho, através do qual cai numa espécie de “wormhole” que a conduz até o País das Maravilhas.

Wonderland continua dominado pela maldosa Rainha de Copas (Kathy Bates), mas o esquema de dominação é bem diferente do descrito no original de Carroll (ameaças constantes de cortar as cabeças e o dragão Jabberwocky). Diferente do regime de terror do passado, agora a Rainha domina através da estratégia da sedução.

Com a ajuda de uma organização secreta (a “Sociedade do Coelho Branco”, um mix de Gestapo e SS nazista) sequestram seres humanos (“ostras” como eles denominam) no mundo real trazendo-os através do espelho/portal. Na Wonderland são mantidos prisioneiros em um gigantesco cassino em estado de semi-inconsciência e euforia em jogos em que todos sempre ganham. Mantidos nesse estado de delírio e euforia pelos prazeres proporcionados pela gratificação instantânea artificialmente criada, sentimentos, emoções e paixões são drenados para que os “carpinteiros” (os cientistas e técnicos laboratoriais) destilem a essência em frascos que se tornam a droga e moeda de troca para os súditos da rainha.

O sombrio e distópico País das Maravilhas 
150 anos depois

Em entrevista Willing explicou a sua linha criativa na adaptação do clássico de Carroll (veja em “Alice’s Caterina Scorsone and Nick Willing Interview”). Ele encontrou na personalidade da Rainha de Copas (impulsiva e imediatista) a ligação com o mundo contemporâneo. A Rainha descobrirá que, depois de 150 anos, o mundo real tornou-se igual a sua personagem: uma cultura consumista orientada pela busca obsessiva de prazer e gratificação instantânea. É o mesmo argumento do filme “Um Século em 43 Minutos” (Time After Time, 1979) onde Jack o Estripador foge da Inglaterra vitoriana através de uma máquina do tempo para descobrir, entusiasmado, que o mundo moderno tornou-se a sua imagem e semelhança.

Por isso, na nova versão de Willing a Rainha abandona o castelo para morar em um bizarro cassino retro (a melhor tradução do mundo contemporâneo) e deixa o dragão Jabberwocky vagando solitário pela floresta (a sua única aparição é desengonçada e patética).

À Sombra da lenda de Alice

O notável na “Alice” de Willing é que essa produção não se resume a uma mera adaptação, mas pretende ser uma continuação do clássico de Lewis Carroll. Em vários momentos, quando Alice é apresentada aos personagens de Wonderland, todos perguntam: essa é a Alice da lenda?

Se Lewis Carroll retratava a Wonderland como um espelho invertido do mundo adulto vitoriano (onde a lógica e a racionalidade eram viradas do avesso por meio do “non sense” e do surrealismo, denunciando a ilusão por trás da racionalidade vitoriana) aqui na Alice de Willing o espelho não tem o papel de inversão: é um portal, uma continuidade entre o mundo real e o ficcional. Em outras palavras, o mundo real humano superou todo surrealismo da ficção a tal ponto que a Rainha de Copas pretende, através do bizarro cassino que destila emoções humanas, imitar em seus domínios o fantástico mundo consumista das gratificações instantâneas. A ficção imita a realidade.

Por exemplo, o personagem do Chapeleiro (Andrew Lee Potts) não propõe enigmas, charadas ou tiradas metafísicas como o original. É pragmático, luta pela sobrevivência para que sua casa de chás sobreviva à guerra travada entre as forças de Resistência e os “engravatados” (a polícia da Rainha de Copas). Resolve ajudar Alice na sua busca pelo pai (um dos humanos sequestrados pela Rainha) por um motivo bem objetivo: “preciso de motivo para ajudar uma garota linda num vestido bem molhado?”

Por isso, a minissérie “Alice” possui o tom distópico, típico da ficção pós-moderna. No passado a ficção tendia ou para a utopia (busca por novas realidades) ou para a chamada “verdade parabólica”, isto é, a representação por meio de parábolas que, de forma invertida, tematizavam a realidade por meio da ironia, paródia, “non sense” etc. (como na “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll). Ao contrário, no pós-moderno os mundos ficcionais são apresentados como extensões da realidade (de forma hiperbólica, retro ou hiperreal), como se a realidade tivesse ultrapassado em muito a capacidade imaginativa ficcional.

Seres humanos como “ostras”

Como vimos em postagens anterioras (veja links abaixo), a saga de Alice de Carroll teve inspirações ocultistas e gnósticas, principalmente nas profundas associações da protagonista com o arquétipo de Sophia. Em Willing a conexão gnóstica torna-se explícita, principalmente quando mostra os humanos prisioneiros em Wonderland sendo apelidados de “ostras”. Por que “ostras”? Essa é a resposta que o Chapeleiro da para Alice:

Alice – Por que sou uma ostra? Isso? (apontando para uma tatuagem em seu braço) 
Chapeleiro –  
Isso não vai sair. Só pessoas do seu mundo ficam verdes [apontando para a tatuagem em Alice] quando queimadas pela luz … É o jeito dos engravatados marcarem as caças. E eles os chamam de ostras por causa das pérolas cintilantes que vocês todos carregam por dentro.”

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Luis Nassif

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