Resenha: Ian McEwan – Serena

Ian McEwan - Serena

Ian McEwan – Serena

Companhia das Letras – 380 páginas

   Ian McEwan, premiado escritor inglês nascido em 1948, não escreve seus livros baseado somente naquilo que tem na cabeça. Cada um de seus romances traz em seu curso os registros de uma pesquisa prévia minuciosa sobre o assunto tratado. Em “Sábado” (2005), por exemplo, a rotina de um neurocirurgião é dissecada em pormenores até mesmo científicos, de maneira que nos sentimos penetrar na mente do profissional e seus problemas diários no trabalho. O autor estuda seriamente o contexto histórico e cotidiano de suas personagens e, por conseguinte, o leitor confia na solidez da narrativa.

   Os romances de McEwan, contudo, vão além dessa concretude, revelando bom conhecimento de técnica literária, poderosos ganchos de interesse para o leitor e uma prosa que flui de maneira inteligente e atual. No caldeirão literário do romancista, misturam-se política, sexo, ambiência social refinada, suspense e dilemas do espírito humano. O leitor – embora eu não fale aqui do leitor habitual de best sellers – se entrega com prazer ao sabor de suas histórias.

   “Serena” (2012) é narrado em primeira pessoa. A personagem central é uma belíssima jovem de 23 anos, criada no leste da Inglaterra, filha de um vetusto bispo anglicano e de uma zelosa senhora que faz as vezes de âncora do marido. Por insistência da mãe, cuja aparência conservadora esconde os eflúvios da corrente feminista dos anos 70, desiste do estudo da Literatura e passa a cursar Matemática em Cambridge. O destino de Serena deve ser audacioso e brilhante, a fim de mostrar a força da nova mulher, sair do quadrado destinado à sua condição e conduzir a bandeira de um período libertário.

   A jovem Serena estuda matemática e constrói, afinal, uma carreira acadêmica sem muito louvor. Continua, porém, apegada aos seus romances, que lê com voracidade. Passa a escrever artigos literários para uma revista pequena que segue fórmula editorial progressista em ascensão naquela época. Enquanto isso, é seduzida pelos textos de George Orwell – apontado no livro como um escritor cooptado pela propaganda ocidental – e do dissidente soviético Alexander Soljenítsin, entre outros que serviram aos esquemas. Seus artigos decepcionam os editores da revista devido ao viés anticomunista. Lembremos que a história se passa no auge da Guerra Fria, em uma Europa onde convivem intelectuais de esquerda, em uma Londres aturdida por atentados do IRA.

   Por meio de um dos seus namorados, de quem logo se desliga, Serena conhece Tony Canning. Ela mal sabe que existe uma máquina da informação levada adiante pelos interesses conjuntos dos EUA e de seu país, na qual os órgãos de espionagem se dedicam a combater o ideário inimigo do totalitarismo. Tony é um homem culto e experiente, bem mais velho que Serena, casado, que trabalha para o MI5, ou seja, pertence a essa máquina. Eles se tornam amantes e, entre seções de sexo e leitura, inicia-se um processo de preparação cultural e ideológica para integrá-la ao serviço secreto. O rompimento entre ambos vem logo e é dramático, mas Serena é admitida no MI5. Começa num escritório, por baixo, executando funções subalternas.

   Feitos alguns testes de campo com a jovem funcionária, ela recebe sua primeira missão, foco da metade final da história. Serena deve convencer um jovem escritor e professor universitário a aceitar uma valiosa bolsa de uma fundação que divulgará seu trabalho. O dinheiro virá do serviço secreto, sem que ele saiba. Serena já aprovara os contos de Tom Healy, julgando-os sintonizados com os objetivos de pregação do MI5. A missão confirma-se fácil e, evidentemente, Tom e Serena se apaixonam.

   O desenrolar do romance apresenta inúmeras citações literárias e, mais que isso: há vários momentos em que se confronta o leitor com aquilo que se espera dele, ou o escritor com aquilo que os outros esperam de seus escritos, ou o leitor com aquilo que ele espera do escritor, ou o escritor com aquilo que ele espera de si mesmo e de outros escritores. Tem-se a sensação de que o pano de fundo da obra é uma abordagem sobre expectativas ligadas ao mundo da literatura e as inevitáveis frustrações advindas de diferentes ângulos e concepções típicas da interpretação humana. Os contos de Tom Healy entremeiam-se à narrativa e auxiliam nesse propósito. Por vezes, fascinam Serena, mas surgem incursões literárias que a desconcertam e colocam em jogo sua já arranhada (por outros motivos) credibilidade no trabalho.

   Finalmente, há o dilema moral e amoroso. Serena está apaixonada e sente que deve revelar a Tom os interesses que deflagaram sua promissora carreira como escritor, mas sabe que a verdade destruirá o amor que existe entre eles. Sua mentira causa forte sentimento de culpa, mas, entre o contar e o não contar, ela decide prorrogar indefinidamente. Como leitora, ela prefere os finais felizes. Tom, por sua vez, transmite em suas histórias um apego quase mórbido por finais melancólicos e desalentadores. Quando nos aproximamos do fim do romance, tentamos imaginar o que sucederá. O desfecho é, definitivamente, imprevisível. Serena diz a certa altura que deve ser estabelecida uma relação de confiança do leitor para com o autor. A garota que lê três a quatro romances por semana desaprova truques literários, prefere a solidez desse pacto. Entretanto, será que o autor concorda mesmo com a opinião de sua protagonista? E o leitor, será que concorda com a escolha do autor? São essas, entre outras, as indagações que nos vêm à mente quando chegamos à última linha deste belo romance.


Luis Nassif

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador