Tudo é demasiado humano no filme “Cloud Atlas”

Como um produto hollywoodiano como “Cloud Atlas” (A Viagem) consegue simultaneamente explorar simbologias de mistérios antigos (órficos, pagãos e gnósticos) e, ao mesmo tempo, adequar-se às convenções do gênero blockbuster? Como conciliar em uma mesma narrativa o niilismo do eterno-retorno com a concepção de que a existência é dotada de um propósito que nos levaria a um final apoteótico? Como lidar com o desejo de liberdade e transcendência do espectador dentro de um produto mercadológico da indústria de entretenimento? Os irmãos Wachowski e Tykwer encontraram a resposta na ideia de que tudo é “humano, demasiado humano”: o Universo seria uma perfeita sinfonia. O que atrapalha é a humanidade. “Cloud Atlas” faria nas entrelinhas o julgamento religioso das ações humanas.

“O que tentamos foi fazer uma história sobre uma reviravolta, a mesma reviravolta experimentada pelo personagem Neo que sai deste mundo oprimido e programado para participar na construção do sentido da sua vida. E nós pensamos assim: poderemos levar ao público algo similar a experiência do personagem principal nos três filmes?”, afirmou Lana Wachowski referindo-se a uma comparação entre o atual “Cloud Atlas” e a trilogia “Matrix” (Veja “Cloud Atlas Entrevista” In: Scifiworld).

O filme “Cloud Atlas” (com o infeliz título em português “A Viagem”, que vamos ignorar nessa postagem) dirigido pelo trio Tom Tykwer (“Corra, Lola, Corra”) e Lana e Andy Wachowski (trilogia “Matrix”) é um exemplo magistral de como a indústria de entretenimento equilibra-se em uma corda bamba entre o impulso metafísico em lidar com antigas simbologias dos antigos mistérios sejam pagãos ou gnósticos (que no final procuram capturar o desejo por liberdade e transcendência dos espectadores) e a necessidade de fazer um produto que se adapte às convenções ideológicas do gênero blockbuster.

Nas quase três horas de duração, entramos em pânico na primeira meia hora ao não entendermos nada sobre o propósito de cada uma das seis estórias narradas de forma entrelaçada e aparentemente aleatória. Aos poucos vamos ligando os pontos e passamos a saborear a brilhante montagem das sequências. Como o próprio David Mitchell (autor do livro no qual se baseou o filme) afirmou, a chave é o tema da reencarnação. Um empreendimento difícil e arriscado ao entrelaçar eventos ao longo de cinco séculos, em diferentes gêneros (sci fi, drama, espionagem, policial etc.) com os mesmos atores vivendo papéis, personagens, sexo e raças diferentes, sugerindo as diversas existências numa espécie de jornada cósmica de almas imortais.

Seis histórias

Situada em 1849, a primeira história é sobre Adam Ewing (Jim Sturgess), um advogado americano de São Francisco que, em uma viagem de navio, ajuda um escravo clandestino. Mas sem ele saber, está sendo lentamente envenenado por um sinistro médico, interpretado por Tom Hanks, que tenciona roubar objetos de valor de Adam.

A segunda história, situado no Reino Unido em 1936, é emocionalmente mais profunda. É sobre o atormentado Robert Frobisher (Ben Whishaw), um talentoso compositor musical que é vitimado pelo drama da sua bissexualidade e é forçado a deixar seu amante, Rufus Sixsmith (James D’Arcy). Robert está em processo de composição do “The Cloud Atlas Sexteto”, uma obra-prima que encontrará reconhecimento e valorização no futuro.

A terceira narrativa tem lugar na Califórnia em 1973, onde uma jornalista investigativa chamada Luisa Rey (Halle Berry) se encontra com o cientista nuclear Rufus Sixsmith (Tom Hanks) e desvendam uma conspiração da indústria petrolífera para criar um acidente que desmoralize diante da opinião pública a busca de qualquer forma alternativa de energia.

A quarta história situa-se no Reino Unido em 2012, e gira em torno de Timothy Cavendish (Jim Broadbent), um editor de 65 anos de idade, que se vê em apuros em um esquema de extorsão. Esta é a estória mais divertida e agradável.

Em termos de ação sci-fi a quinta estória tem a assinatura dos Wachowski: Na Coréia de 2144, vemos Sonmi-451 (Bae Doona), um clone geneticamente criado, que é pouco mais do que um escravo, até que um líder rebelde chamado Hae-Joo Chang (Jim Sturgess) a resgata. Tudo em um estilo visual diretamente inspirado das animações japonesas.

A história final é ambientada no Hawai pós-apocalíptico 2321. Os dois personagens principais são Zachry (Tom Hanks), membro de uma tribo primitiva, e Meronym (Halle Berry), um membro de uma civilização avançada deixada para trás por colonos que abandonaram o planeta. Meronym está em busca de “Cloud Atlas”, uma estação de comunicação localizada no pico de uma montanha que permitirá a ela enviar um sinal de socorro – sua civilização estaria condenada à extinção pela elevada taxa radiação existente na Terra. Mas os membros da tribo se recusam a ajudar por causa de superstições tribais sobre demônios que habitariam as altas montanhas. Zachry é constantemente atormentado por uma criatura imaginária demoníaca (Hugo Weaving), que procura convencê-lo a gestos e pensamentos egoístas e mesquinhos.

Telos versus eterno-retorno

Lemos no slogan do pôster promocional de “Cloud Atlas”: “Tudo Está Conectado”. Isso faz lembrar clichês new age como, por exemplo, “somos todos um”. Mas seria uma injustiça reduzir as quase três horas de “Cloud Atlas” a uma aborrecida e incompreensível saga new age, como estão deduzindo muitos críticos especializados.

O “mapa” das reencarnações em “Cloud Atlas” 

(clique na imagem para ampliá-la)

Tykwer e os Wachowski fizeram algo mais complexamente elaborado: tentaram encontrar um ponto de equilíbrio e ambiguidade entre tradições filosóficas orientais e ocidentais, entre telos (a ideia ocidental e socrática de que a existência seria dotada de um propósito ou finalidade que se desdobraria ao longo do tempo) e a crença oriental da “metempsicose” ou transmigração de almas – de origem hindu e egípcia que será a base dos mistérios órficos da antiguidade de que vida e morte vivem numa eterna batalha formando um círculo de recorrentes encarnações e uma espécie de eterno-retorno. Tempo linear de telos versus eterno-retorno da metempsicose. 

A jornada da alma se consistiria em uma alternância entre a liberdade momentânea da matéria pela morte e a posterior reencarnação e o retorno à prisão da matéria, criando um círculo de necessidade. A mensagem da lenda de Orfeu clamaria pela possibilidade de libertação dessa espécie de eterno-retorno através de uma autopurificação para que possamos retornar aos deuses (a Dionísio, em particular), transformando esse círculo em uma espiral ascendente.

Esse misticismo órfico da Grécia do século VI A.C. vai inspirar Platão e o Gnosticismo do início da era cristã que via a reencarnação como uma forma de prisão em um cosmos essencialmente dominado pelo Mal.

Luis Nassif

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