Carta aberta a um amigo bem-intencionado

Prezado, antecipadamente desculpe-me por texto tão longo. Mas como você pareceu-me realmente conhecer o sexo dos anjos, ele foi necessário.

Sendo você um defensor da “lei seca”, não pude deixar de notar que seu post (http://www.advivo.com.br/blog/gunter-zibell-sp/cidadao-sopre-o-bafometro) não é o que eu chamo exatamente de isento ou equinânime, mas ele é bom. Bem educado, como, aliás, não poderia deixar de ser um texto vindo de você, pretensamente ponderado e quase convincente. Não deu, mesmo assim, valeu a “tentativa”.

Começo pelo fim:

“Posto isso, toda a argumentação em torno de constitucionalidade, não fazer provas contra si mesmo, etc revela-se sexo dos anjos.” 

Não, isso é o principal. A presunção da inocência é a base do Estado democrático de direito. Não ter de gerar provas contra si mesmo é a garantia de que ninguém deverá ter que provar a sua inocência, de que o ônus da prova cabe ao acusador. Isso se aplica a qualquer situação, é um direito fundamental, não pode ser flexibilizado. Se precisar ser flexibilizado para a aplicação de uma lei é porque a lei está errada.

E a tal “lei seca” está. Ela criminaliza o consumo de álcool e a direção. O que era infração a ser tratada com multa e perda temporária do direito de dirigir passou a ser crime sujeito à prisão.

Todo o restante da sua argumentação no mesmo sentido fica, então, prejudicado pelo mesmo motivo e não careceria de ser discutido. Mesmo assim, gostaria de destacar este trecho:

Mais fácil, mais barato e com o mesmo resultado final, é fazer uma interpretação da Constituição de que, sim, é legal obrigar a soprar o bafômetro, …”

Claro está que é um contra-senso a argumentação de que deva-se flexibilizar garantias constitucionais por isso se revelar mais barato. Mas o que eu quero destacar é o uso do verbo “obrigar”. Se até você acha que o Estado tem o direito de obrigar pessoas a fazer ou deixar de fazer algo, fico preocupado. O Estado tem o poder de fazê-lo, sem dúvida. E você sabe bem, até porque conhece a história e a cultura de vários povos, o que pode acontecer com o uso desse poder. Principalmente quando as massas são levadas a acreditar que há um inimigo a combater, um responsável único por todas as suas mazelas. 

De qualquer modo, sabendo-se que a Lei Seca foi aprovada nas duas casas do Congresso, sancionada por um presidente (2008) e emendada pela presidenta atual (2012), … Uma lei tão democrática quanto o voto obrigatório, a criminalização do aborto, a proibição de tirar crianças da escola para dar ensino doméstico. Questionável, mas que se cumpra se está em vigor.

Há fortes razões para se questionar todas essas leis citadas por você. E, quanto ao aborto, já vimos recentemente como pode-se deturpar a lei para usá-la como instrumento de perseguição ideológica e política, inclusive. Vamos dar o caso por encerrado e resignarmo-nos com o “fiat”?

Quero fazer uma provocação com o seu conceito de “democrático”. O Deputado e Pastor Marcos Feliciano foi democraticamente eleito e democraticamente indicado por seus pares, também democraticamente eleitos, para ocupar a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados Federais. Tudo segundo as regras do regimento interno dessa casa – regimento constitucional. Tem um monte de gente querendo tirá-lo de lá na marra. Eu também acho que ele deva sair. Mas temo que você não. Seguindo seu raciocínio, ele deve ficar onde está. É lei, e a lei é a lei- cumpra-se.

O que Feliciano tem a ver com a “Lei Seca”? Algumas leis são mal intencionadas e, embora legais, inaceitáveis. A tal “lei seca” só surgiu para dar uma resposta à sociedade indignada com o Congresso que não aprovou uma iniciativa do Ministério da Saúde que restringia a propaganda e o comércio de cerveja. A demonização que tem sido praticada em relação a quem bebe e dirige é uma forma de ocultar responsabilidades financeiramente interessadas. 

“Acostumemo-nos com o caminho das pedras: quem não estiver satisfeito com uma lei que pressione seu deputado, que se mobilize em petições, que proponha uma Lei Popular. Mas que ninguém julgue ser capaz de se eximir de uma fiscalização.”

Bento XVI não diria melhor. Não é fácil aprovar ou modificar leis sendo-se tão somente um cidadão comum, você sabe disso. Espero sinceramente que toda a pressão do movimento possa um dia aprovar a lei que reconheça o casamento homo-afetivo tão válido quanto o hétero-afetivo. Um dia talvez, mas até lá, é seguir o seu conselho: “Mas que ninguém julgue ser capaz de se eximir de uma fiscalização.”

De onde você começou, tirei este trecho:

“O que me parece mais questionável na Lei Seca é o limite muito restrito para a presença de álcool no sangue, nem nos países mais restritivos da Europa é assim.” 

É isso também, mas não é só isso. É preciso proibir a propaganda de cervejas na televisão e o seu comércio em postos de gasolina e à beira de estrada. É preciso descriminalizar o consumo de álcool e direção. Multa, se for o caso, e perda temporária do direito de dirigir são soluções muito mais eficientes e democraticamente adequadas e aceitáveis. É preciso substituir o teste do “bafômetro” por um teste psicotécnico que avalie as habilidades de controle emocional, coordenação motora e raciocínio do motorista. Óbvio, nem só motoristas alcoolizados são perigosos. Teste esse aplicado por agentes treinados e conscientes da sua função social, que não enxerguem em qualquer cidadão um criminoso potencial. É preciso dotar as viaturas de câmeras que filmem a aplicação do teste. Cidadão e agente policial estariam protegidos.  Qualquer celular, hoje em dia, possui uma câmera. Porque aceitarmos apenas o depoimento de um policial, ainda que honesto, se é possível gerar evidências objetivas?

Por fim: 

“E o resultado esperado também é claro, tentar, por exemplo, passar de 50 para 40 mil o número de vítimas fatais por ano. Um objetivo nobre, portanto. E alcançável.

Sim, é nobre e alcançável. Mas não com o “bafômetro” e punições severas como quer nos fazer crer o jornalismo televisivo patrocinado por cervejeiras. Será necessária uma verdadeira política de trânsito que fiscalize e coíba atitudes agressivas, anti-sociais e imprudentes. E vamos por no balaio os moto-boys, motoristas de caminhões e ônibus que dirigem sem consciência do grau de risco e dano das máquinas que operam. Vamos por no balaio os motoristas que não respeitam pedestres em suas faixas ou que fazem manobras irresponsáveis por que estão atrasados para a “reunião com o cliente”. Vamos por no balaio os pedestres e ciclistas que se expõem a risco por não observar as regras de trânsito que lhes cabe obedecer. Vamos por no balaio os governantes que não dotam nossas estradas de infra-estrutura que nos garanta segurança. E vamos por no balaio também, mas não somente, os motoristas que dirigem sob efeito de substâncias químicas, álcool, inclusive.

Uma sociedade menos repressora, atenta e sensível para as questões da condição humana e consciente das suas prerrogativas de cidadania e dos seus deveres de civilidade também ajudaria bastante. Tenho esperanças e tento contribuir de alguma forma para que esse seja o mundo, pelo menos, dos meus bisnetos. Caso meus filhos me dêem netos e os saibam educar para esse fim, por suposto.

Para terminar, inspirado em Voltaire, um forte, sincero e fraternal abraço.

Redação

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