Avenida São João

 

Fui convidado por um querido amigo arquiteto para o lançamento do livro Política Municipal de Habitação: Uma Construção coletiva, publicação que apresenta o processo de elaboração do PMH[1]. Antes de ir ao lançamento, passei na FESPSP, fiz minha rematrícula e revi amigos antes das festividades do fim de ano.

Ao sair da ESP escolhi ir a pé ao meu destino: Praça das Artes[2] (vejam as fotos). Ao caminhar pelo centro de São Paulo, passados 11 anos desde que me mudei para essa cidade, ainda me deslumbro com sua ambígua cultura.

 Riqueza arquitetônica, pessoas de todas as caras que se amam e se decepam, a precária educação social, carros, motos e ambulâncias que compartilham e se esmagam em ruas e avenidas.  A beleza e o mau cheiro se confundem em meus sentidos, mesmo assim me alegro por viver nessa cosmopolita cidade.

Passei pelo Arouche e segui para Avenida São João. Quando faltavam apenas duzentos metros para o meu objetivo final fui surpreendido por uma chuva torrencial. Na tentativa de correr em busca de abrigo avistei um bar que mais parecia uma república africana, ali dei um tempo e me coloquei a pensar nos dramas dos residentes africanos em São Paulo. Línguas que se misturam, português, inglês e dialetos, roupas coloridas tradicionais e até as mais sofisticadas tendências urbanas estavam postos naquele ambiente.

Lembrei-me das histórias sobre tráfico de pessoas, de cocaína e o sonho de ascensão econômica e liberdade, pois muitos haviam desistido de seus países de origem, que ainda estão mergulhados no terror da fome e da guerra civil. Acho que meu pensamento estava recheado pela história de africanos que vi na série “Destino São Paulo” [3]. Decidi sair daquele local.

As prostitutas com gracejos se esforçavam para proteger seus cabelos a base de chapinha, e sorrateiramente tiravam o salto se deslocando com facilidade para longe das enxurradas. A Igreja Da Graça não só abrigava fiéis, mas também todos aqueles que de alguma maneira buscavam proteção, não no divino, mas sim no vão da entrada que dava acesso ao templo.

O Bar Brahma estava lotado, pomposo e cheio de tradição improvisava seu samba que abafado pelo som dos trovões e fortes gotas d’água se confundiam ora com o som da cuíca, ora com o do pandeiro e até com o do cavaco.

Toda essa boa sonoridade composta pela natureza e por alguns bambas do samba, foi interrompida por conversas desnecessárias de almas penadas ou despenadas pela chuva. Dois jovens negros procuravam pela Galeria do Rock, pela conversa pude entender que iriam encontrar outros amigos para tomar cerveja. Um deles se manifestou com o tema da vez – o fim do mundo – dizendo que se era chegada a hora, que essa era uma boa hora, pois completaria 22 anos e não tinha mais perspectiva e esperança na “droga do mundo”.  Uma senhora loira interrompeu o diálogo dos garotos, declarando a incoerência no fato de um garoto ser tão novo e já reclamar da pouca vida e que ela, mesmo avançada em idade ainda queria viver por longos anos.

Aos poucos se cessaram os ruídos humanos, aos poucos a chuva levara pela correnteza os sacos de lixo e o mau cheiro das ruas perdia o acento. A odisseia na Avenida São João reservara para mim um momento, uma imagem, uma revelação daquilo que paulatinamente aceitamos como forma legitimada de sociedade.

Dois meninos em condição de rua corriam descalços mas levavam consigo um guarda-chuva. Tenho certeza que muitos, como eu, desejariam ter também um guarda-chuva como aquele para poder seguir viagem. Mas os meninos não estavam tão seguros assim, pois um forte vento passou e lançou o guarda-chuva para o meio da avenida, onde ônibus e carros o destruíram.

O vento, como um malandro, soprou o guarda-chuva, os garotos nem se quer olharam para trás, continuaram a correr descalços e sumiram ruas adentro.

 Temos deixado o vento soprar o guarda-chuva quando olhamos e apenas aceitamos a deterioração das relações sociais e da cidade. Passei por estrangeiros africanos, prostitutas, meninos em condição de rua e cheguei – molhado ao meu destino e dei de cara com outra classe; a elite dotada de erudição que desenvolve os planos de habitação dessa cidade, onde comemoravam o lançamento de um livro que trata de políticas municipais de habitação.

 O lançamento foi regado a champanhe, música ao vivo e pessoas prenhes de cultura. A chuva tropical que caiu em São Paulo me proporcionou grandes reflexões e pude sentir, nem que por um instante, o movimento e as manifestações urbanas, o livro que é bom eu não peguei, pois cheguei atrasado devido a essa mesma chuva. Vivemos numa cidade ambivalente. 

 


[1] Plano Municipal de Habitação

[2] http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1195809-praca-das-artes-quer-requalificar-centro-de-sao-paulo.shtml

[3] Série que mostra a vida cotidiana de estrangeiros na cidade de São Paulo.  

Ilustração de Daniel Cala

Redação

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