O último galanteio do seu Oscar

É minha irmã Regina quem me conta a história. Somos cinco irmãos, eu mais quatro irmãs. Sou o primogênito, Regina a segunda.

Em 1974, seu Oscar foi acometido de um AVC, que lhe tirou os movimentos do lado direito do corpo. Ainda houve um período em que se submeteu à fisioterapia. Depois, foi gradativamente desistindo da vida, tornando-se mais pesado, ficando mais tempo na sua poltrona e, curiosamente, mais tranqüilo, sem aquela ansiedade que o acompanhou permanentemente nos dez anos anteriores.

Passava horas na poltrona assistindo televisão e só se assustando um pouco quando os netos passavam correndo na sua frente, com medo de um pisão nos seus pés frágeis.

Fora isso, seus dias foram se tornando cada vez mais silenciosos. Quando ia visitá-lo, sentava-me na poltrona ao lado e passávamos muito tempo sem conversar, mas um sentindo a presença do outro. Não sei como era com a Regina. Talvez houvesse mais conversa, porque ela sempre foi uma filha extraordinária desde que, com pouco mais de dez anos, ficava no balcão da farmácia atendendo os fregueses, mas, principalmente, aquecendo o coração do seu Oscar com a sua presença.

Depois do derrame, coube aos dois filhos mais velhos ajudar a segurar a barra de casa. Mas a Regina esteve lá desde sempre, presente desde menininha, com aquelas bochechas lindas, de menina rechonchuda, atendendo os fregueses da farmácia, jamais saindo do seu posto.

Pouco tempo antes do segundo derrame, seu Oscar já não tinha muita noção do que ocorria fora do apartamento. Um dia chamou a Regina e lhe fez um pedido: queria que comprasse o vestido mais bonito que achasse para a dona Teresa. Colocou a mão no bolso e tirou um punhado de notas e moedas, de valor irrisório, tudo o que havia conseguido guardar, mesmo sem ter noção clara sobre o valor do dinheiro.

A Regina foi e comprou um vestido bonito, que devolveu algum viço ao ar cansado da dona Teresa. Nova ainda, com pouco mais de 60 anos, o hipercolesterol tinha judiado de mamãe. Em 1977 fez a primeira cirurgia de ponte de safena. Em 1982, a segunda. Em 1988, o doutor Sérgio Oliveira não lhe deu mais esperanças. O colesterol tinha vencido a batalha e tomado conta de todo o coração.

Dona Teresa continuou lutando pela vida até o final. Mas se deixou abater. A beleza feneceu, o cabelo embranqueceu, ficou com um ar precocemente envelhecido. Seu Oscar sentia o fim se aproximando, mas quis o último reencontro com as lembranças da jovem que, um dia, incendiou seu coração. Queria enfeitar a sua “velha” – “meu velho”, “minha velha”, era como se tratavam.

Dona Teresa usou o vestido em todas as festas e reuniões de família no ano e pouco que viveu, depois daquele dia. Seu Oscar chegou a vê-la de vestido novo, mas por pouco tempo. Alguns meses depois, um segundo AVC acabou com ele. Foi levado à Beneficência. Lá, um raio-x constatou que seu cérebro tinha acabado. Um neurologista ambicioso prorrogou-lhe a vida, contra minha opinião. Durante um ano, vegetou em sua casa, mas sempre assistido por dona Teresa. Mantivemos os almoços de domingo. Algumas vezes, houve reuniões. E dona Teresa, sempre com o vestido bonito.

Agora, Regina me escreve, com seu texto claro e emocionado, lembrando o episódio. Mas não foi esse o último galanteio do seu Oscar. O último, mesmo, foi quando, na cama do hospital, já sem conseguir falar, fez um gesto chamando a Regina. Ela foi até o lado da cama, ele, com esforço, esticou o braço esquerdo e, com a mão fechada, passou o indicador pelo seu rosto e balbuciou: “Bonita”.

Naquele momento, revi a menina de pouco mais de dez anos, responsável desde cedo, no balcão da farmácia, onde eu me recusara a ficar. Depois, me lembrei de sua presença recatada, quase silenciosa, ao longo desses anos todos, sempre apoiando familiares, sem alarde, sempre presente, sem rompantes.

Ao longo desses anos todos, por minha retina cansada passaram cenas inesquecíveis, de filhas, de mãe, de amigos. Mas, por mais que viva, cena alguma conseguirá superar o último galanteio do seu Oscar, no último suspiro da sua consciência.

Luis Nassif

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