Página rasgada

A cena se passa na sala de espera do consultório do cirurgião plástico. Ambiente elegante, fino, silencioso, apenas duas mulheres aguardam no confortável sofá. Pela fama e tipo do serviço prestado imagina-se, claro, que as clientes são do que se chamaria boa família, educadas, certo? Errado. Ter dinheiro não nada tem a ver com ter educação.

Então, vamos à história. A cliente A folheava uma destas revistas de badalação de celebridades. A cliente B pegou um exemplar do mesmo tipo e ambas ficaram ali, lado a lado, em silêncio, até que a cliente B, quando resolveu abrir a boca, disse o seguinte:

– Você não vai falar nada pra ninguém se eu arrancar esta página, né? É que adorei este vestido!

A cliente A não só não conseguiu responder, como ficou atônita. Com certeza também enrubesceu, pois ela sofre de vergonha alheia crônica ainda não devidamente tratada. E a cliente B, tranquilamente, começou a puxar a página. A cliente A, curiosa, esticou o olhar para ver o tal vestido valeria a pena tamanho descaramento. “Bonitinho”, pensou.

E a cliente B foi puxando o papel, devagar, para não chamar a atenção:

– Nossa, está fazendo muito barulho. Será que alguém está ouvindo?

E a cliente A, mais uma vez, só olhou. Não conseguia reagir. Até que a cliente B finalmente terminou de rasgar a página, dobrá-la e colocá-la discretamente dentro da bolsa.

A cliente A perdeu a concentração; nem mesmo folhear a revista para ver a fotos foi possível. A cabeça ficou a mil. Como aquilo foi feio! A que ponto chega um ser humano ao se achar tão importante, tão acima do bem e do mal. Para aquela mulher, seu desejo poderia, sim, atropelar o dever de respeitar o espaço e o objeto alheios. O que se pode esperar de um mundo povoado por gente assim?

Nossa sociedade sofre de um mal vergonhoso chamado preconceito, que comumente leva o indivíduo a desconfiar de pessoas pobres, mal vestidas, “mal encaradas”, como costumo ouvir por aí. Quando há uma revista ou livro num local público com páginas arrancadas, nunca se imagina que uma loira vestida de grife da cabeça aos pés poderia ter cometido tal delito. Porém eram estas as características da cliente B, o que me leva a concluir que o ser humano pode ser podre em qualquer classe social.

Ouvia frequentemente nas reuniões da escola do meu filho que a maioria dos pais não se importam ou têm medo de ensinar e impor limites, dar noções de direitos e deveres, respeito ao próximo. E que as crianças chegam às salas de aula totalmente despreparadas para o convívio em grupo. São egoístas, individualistas e agressivos. Também tive a oportunidade de ver jovens com estas características chegarem às cadeiras da faculdade. E muitos vieram de escolas particulares. E aí eu penso: minha nossa, que será que a cliente B ensina aos filhos em casa? Que autoridade teria para orientar uma criança ou um jovem?

É sobre isso que penso sempre, principalmente quando me refiro ao total desânimo quanto à melhoria das condições ambientais do planeta, do convívio em sociedade, desde a paciência para aguardar numa fila sem exasperar todos à volta, até a elegância de não jogar um papel de bala no chão, ou se comportar como animal racional no trânsito.

Ao tomar conhecimento do que ocorreu com as clientes A e B concluí que ser servente ou doutor não dá oferece a exata noção de respeito, de direito, de educação. Muito se tem falado por aí sobre depressão ser o mal do século, mas pra mim o grande mal é o egoísmo, puro e simples. E não estou sendo piegas. Basta pensar em todas as atrocidades que são cometidas diariamente e chegaremos à origem de cada uma delas.

Posso ter ido longe demais com os exemplos, mas o delito da cliente B, ao pensar que tinha o direito de arrancar a página de uma revista que não era dela, é o mesmo do cidadão que no trânsito não espera sua vez, ultrapassa sinal, força passagem e acha que buzina tem pó de pirlimpimpim. É o mesmo do cliente do bar que reclama ao garçom do erro pra mais na conta, mas é incapaz de chamá-lo pra corrigir um erro pra menos. É o mesmo grave delito de um pai que tira seu filho da escola particular, onde corre o risco de ficar reprovado, e o transfere para a escola pública, porque lá tem certeza que o jovem vai passar de ano.

Que tipo de caráter ele espera do filho adulto?

Egoísmo, tudo egoísmo. Eu sou importante, eu sou melhor, eu não posso esperar, você está me atrapalhando, eu estou pagando, eu mando, eu, eu, eu. E para pessoas assim, infelizmente, não adiantam campanhas bonitinhas de preservação da natureza, destas que chamam de conscientização – aff, que palavrinha horrorosa. Como costumo dizer, educação é artigo de luxo e o preço que se paga é desprendimento. O outro, sim, é tão importante quanto eu e portanto, devo tratá-lo como gostaria que me tratasse. Difícil, né?

Luis Nassif

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