Retrato de Sérgio Porto escrito por Millôr Fernandes

Por Urariano Mota

As dores ladravam, e Sérgio Porto passava

Ele foi meu amigo e meu irmão durante 20 anos: vivemos juntos, bebemos juntos e amamos juntos.

Meu amigo? Era mais que isso. Meu irmão? A expressão carinhosa e intensa foi gasta, a meus olhos e ouvidos, por milhões de nhé-nhé-nhés pseudoliterários que vejo a toda a hora na imprensa e ao vivo, enquanto as mesmas pessoas que se chamam de irmãs se comem por trás. Mas que fazer com as palavras? Sérgio Porto foi meu amigo e meu irmão durante 20 anos, os melhores.

Vivemos juntos, bebemos juntos, amamos juntos, fomos à praia juntos (somos desses boêmios cariocas capazes de sair do bar às três da manhã, estar na praia às oito, na máquina de escrever às dez) e de uma certa forma moramos juntos. Éramos jovens, e nem posso dizer que não sabíamos. Tínhamos a consciência e a euforia correspondentes. Eu, talvez, mais consciência, ele certamente, mais euforia. Porque nas areias fofas de Copacabana ou nas dunas ondulantes de Ipanema, as dores ladravam, e Sérgio Porto passava. Eu brincava, sempre que ele me contava um caso de envolvimento pessoal que abalaria qualquer tronco de ipê: “Se eu tivesse 15% do teu cinismo, seria um homem imensamente feliz”. Ele ria, saudável, e continuava recortando, no violento sol da praia, pedaços dos jornais que lia sem parar, aproveitando o tempo . Pois era, como quase todos os humoristas brasileiros, um trabalhador braçal. Sua extraordinária competência ele adquiriu cavoucando uma datilografia 10 horas por dia, 16 anos seguidos.

Quando eu o conheci, já era alto e louro, numa época do Brasil em que os altos eram poucos, e os louros, importados. Forte e esportivo, jogava bem vôlei e tinha um pé arrebentado pelo futebol. Não gostava de briga, o que aliás era desnecessário – Fifuca, o irmão, brigava pelos dois. Ia levando, amando e contando histórias. Tinha uma cultura surpreendente para a sua aparente leveza intelectual, e os textos que assinava eram não só extraordinariamente bem escritos, com humor, mas também tecnicamente, seu conhecimento formal da língua era bom, sua ortografia, precisa, até a datilografia era cuidada.

De vez em quando, porém, a vida o solicitava demais, e ele não tinha dúvida: mandava à merda a técnica, o cuidado, às vezes até a originalidade, porque o dia só tem 24 horas, e a vida, como ficou provado, apenas 44 anos. Pois era sobretudo um existencial. Durante muitos anos as vicissitudes fizeram dele um bancário (BB), ele que tinha o físico e o temperamento de um playboy. Depois, já famoso como humorista, largou o banco, mas até morrer foi obrigado a muitas horas de trabalho fechado e duro, que o uísque de nossas noites é ganho com o suor de nossos dias e, no caso de Sérgio, extremamente responsável nas obrigações domésticas e sociais, só podia ser pago com um surplus terrível de esforço. Mas foram essas vicissitudes que fizeram dele um escritor.

Por muito tempo foi apenas um gozador incansável de tudo e de todo mundo. Me dava a impressão de que transformava a possível indignação social em humor escrito e falado e tocava o bonde (havia bondes!) sem se deixar abater. Até o dia, me lembro nitidamente o dia, em que, abrindo uma porta, dobrando uma esquina, saltando de um carro, atravessando uma rua, entrando num bar (que importa a forma?), a vida lhe deu aquele golpe baixo que nos está reservado a todos e a cada um: primeiro foi um jab no queixo, depois um pontapé no rosto, enfim o golpe final, inviável, e inacreditável: só a pode entender, por transferência, quem já passou por ela. Sérgio não perdeu a aparência tranqüila, nem física, nem psicológica. Até o fim continuou o mesmo homem bonito, o mesmo rei do papo e da gozação. Mas tinha descoberto o outro lado da condição humana e, em certas madrugadas solitárias, se via a cicatriz.

Eu estava ainda deitado, mas já acordado, às nove horas da manhã, quando vieram me avisar que ele tinha morrido. Sem querer, dei um grito.

Luis Nassif

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