Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Do consumismo ao trambique no filme “Rosalie Vai às Compras”

“Quando você deve 100.000 o problema é seu, mas se você deve um milhão o problema é do banco”. É essa linha de diálogo solta no meio do filme “Rosalie Vai Às Compras” (Rosalie Goes Shopping, 1989) que sintetiza toda a crítica que o diretor alemão Percy Adlon faz da “doença contemporânea”: o cartão de crédito. Apesar da fotografia com muita luz e cores, uma trilha musical composta originalmente para o filme e muito bom humor, Adlon faz um conto sombrio sobre uma sociedade de consumo onde a única barreira para a realização dos desejos não é mais moral ou religiosa, mas financeira. Para Rosalie, todo desejo precisa ser realizado pelo consumo. Se o único impedimento é o financeiro, ela vai dar conta desse pequeno empecilho.

 

“Rosalie Vai às Compras é uma sátira ao consumismo, ao materialismo yuppie de uma década de 1980 conservadora de Ronald Reagan e Margareth Thatcher, e que terminou em um violento crash da Bolsa de Nova York em 1988. Mas que continua ainda muito atual em uma época de crises financeiras globais, mais uma vez após outra década de conservadorismo neoliberal.

Rosalie (Marianne Sägerbrecht) é uma dona de casa alemã que vive dentro do sonho americano, morando interior do estado do Arkansas: tem um marido perfeito (um aviador de dedetização aérea), uma família maravilhosa com sete filhos e uma coleção de cartões de créditos falsos e talões de cheques “borrachas” tão vasta que consegue alimentar seus filhos como reis e comprar qualquer produto que ela vê nos comerciais sem fim que toda a família adora (preferem ver os intervalos comerciais e canais de televendas a filmes ou shows).

Rosalie é uma simpática e carismática tranbiqueira que sozinha com seus golpes na praça sustenta os desejos de uma família excêntrica que lembra a de filmes recentes como “Pequena Miss Sunshine” e “Os Excêntricos Tanembauns”: duas gêmeas limítrofes, um jovem cujo sonho e torna-se um “chef” (Rosalie colabora comprando as mais caras iguarias de gastronomia), outro com um irritante tique de bater um pé nas refeições, o marido fanático por aviação que grava sons de motores de aviões para todos ouvirem  e vive dando voos rasantes sobre a casa, e assim por diante.

Todos com um inquebrantável otimismo no sonho americano transmitido pelos histéricos canais de televendas diante dos quais a família toda se reúne para acompanhar os jingles e antecipar os slogans. Para eles todo sonho ou desejo tem o dever de ser realizado pelo consumo. Se a única barreira que impede isso é a financeira, Rosalie vai dar conta desse empecilho.

Mas as dívidas de Rosalie vão crescendo e os cheques “borrachas” dela não são mais aceitos pelas lojas e supermercados locais o que a obriga a partir para golpes no interior da própria família: limpar a poupança do filho que presta serviço militar na Alemanha e vender as passagens aéreas de volta dos pais que vieram da Bavária para visitá-la.

Tudo muda ao conhecer um computador completo, com modem e impressora. De consumista Rosalie torna-e uma hacker e compreenderá a frase dita pelo carteiro que sempre entrega suas correspondências cheias de cartas de cobrança: “Quando deve 100.000 o problema é seu, mas de você deve um milhão o problema é do banco”. Pronto, Rosalie estará no topo outra vez, revertendo o jogo do sistema financeiro ao criar uma volumosa dívida e uma empresa fantasma.

Consumismo e Esquizofrenia

Numa entrevista para a revista norte-americana “Bomb” em 1990, o diretor Percy Adlon afirmou que “Rosalie Vai às Compras” é o lado sombrio do filme anterior “Bagdá Café” de 1987: “em Bagdá era pura esperança e sentimentos positivos. Em Rosalie, nós olhamos para o espelho de uma das nossas doenças contemporâneas: o cartão de crédito. Neste filme estou alfinetando o sistema, a sedução que está em toda parte dizendo que para ser feliz é necessário comprar. Para mim, o mundo está sempre simultaneamente feliz e triste, agressivo e suave, risos e lágrimas, mas nunca o paraíso” (“Percy Adlon” por Lance Loud In: “Bomb”, 32/Verão 1990).

Percebe-se nesse depoimento que a crítica de Adlon à “doença contemporânea” no filme vai mais além do que a crítica moralista à sociedade de consumo, onde o “ter substitui o ser”. O problema não é comprar, mas os significados esquizofrenicamente contraditórios que as mensagens publicitárias comunicam aos potenciais consumidores: de um lado, a afirmação universal de que todos têm o direito à felicidade e à realização dos seus sonhos, e, do outro, a situação particular de impedimento – a clivagem financeira.

Isso lembra a chamada situação de “duplo vínculo” (double bind) do antropólogo Gregory Bateson que estudava situações de esquizofrenia a partir de ciladas comunicativas onde a vítima ficava paralisada: a mãe transmite uma ordem negativa (“não faça isso, eu te castigo”) e uma contra-ordem positiva, geralmente transmitida de forma não-verbal, que entra em conflito com a primeira (“não entenda isso como punição” ou “se faço isso é porque te amo”) – veja MARCONDES FILHO, Ciro, A Produção Social da Loucura. São Paulo: Paulus, 2003.

Pois a publicidade e toda a sociedade de consumo criam essa verdadeira cilada comunicativa para os indivíduos: explicitamente, cada filme publicitário parece uma reivindicação universalista do direito à felicidade; mas uma contra-ordem não-verbal, uma espécie de sub-texto transpassa todo o campo das mensagens publicitárias: sem dinheiro não há felicidade.

“Ao fim da cota inteira de publicidade absorvida diariamente pelo indivíduo, e ainda mais, da anual, esse puro receptor se encontrará vinculado por uma série infinita de produtos em contraposição ou em justaposição entre si, imersos na sua mente, sem que o seu “corpo” tenha a possibilidade de satisfazer-se, não certamente, com a totalidade, mas nem mesmo com a possibilidade de investimento visual. E então geram-se a ansiedade e o rancor nessa tesoura que vincula e, ao mesmo tempo, não resolve a ligação” (CANEVACCI, Massimo. Antropologia da Comunicação Visual, São Paulo: Brasiliense, 1990, p.49-50).

Rosalie, como uma alemã e estrangeira imersa no sonho americano transmitido pelos canais de televendas, não consegue entender esse “duplo vínculo” contraditório entre o literal e o metafórico, entre mensagens que ao mesmo tempo afirmam e condicionam.

Por isso, ela vai compreender o vazio moral existente na sociedade de consumo, após muitas confissões com um padre católico que, perplexo, acompanha as descrições das falcatruas que Rosalie comete na pequena cidade: não existem barreiras morais ou religiosas para buscar a satisfação dos desejos. Se o único impedimento é de ordem financeira, ela poderá dar um jeito.

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