Dois artistas amados pelos adolescentes e odiados pela repressão, por Sebastião Nunes

Militando na parte interior da esfera literária, esses artistas foram marginais e comeram o pão que o diabo amassou

Rachel de Queiroz, nordestina porreta, nasceu em 1910, perambulou com a família por aqui e por ali, publicou seu primeiro livro, “O quinze”, aos 19 anos, desceu para o ex-Sul Maravilha, instalou-se no Rio de Janeiro e passou a pontificar na política, no jornalismo e na literatura. Foi presa como comunista em 1937, apoiou o golpe militar de 1964 e militou na Arena. Morreu famosa e orgulhosa em 2003, aos 92 anos.

Clarice Lispector, nascida na Ucrânia em 1920, navegou até o Brasil com um ano de idade, perambulou com a família por Maceió e Recife, baixou ao Rio de Janeiro com 14 anos e, aos 24, publicou “Perto do coração selvagem”, uma porrada no pacato meio literário brasileiro. Casada com um diplomata, teve dois filhos, embasbacou com novos e muitos livros os colegas, publicou crônicas no Jornal do Brasil (do qual foi defenestrada por ser judia). Morreu famosa e orgulhosa em 1977, aos 57 anos.

Lygia Fagundes Telles nasceu em São Paulo (1923) e é hoje um expoente da literatura brasileira, tendo publicado seu primeiro livro, “Porão e sobrado” aos 15 anos, edição custeada pelo pai. Com a família, perambulou pelo interior do estado, vivendo algum tempo em Apiaí, Assis, Itatinga e Sertãozinho. Recebeu inúmeros prêmios (alguns várias vezes, como o Jabuti) e chegou a ser indicada para o Nobel de Literatura em 2016. Aos 96 anos, deve continuar orgulhosa de sua obra.

Estas três mulheres são ícones da literatura do país no século XX e merecem todo o prestígio que têm. Mas se comecei com exemplos da “alta literatura”, foi para contrapor dois autores quase seus contemporâneos que, militando na parte interior da esfera literária, foram marginais e comeram o pão que o diabo amassou. (Ressalvando que escrever é uma estranha e patética atividade, e nunca sabemos que demônios povoam e corroem o cérebro dos que a ela se dedicam. Comer o pão que o diabo amassou, no caso, refere-se apenas à exterioridade dos autores.)

1. Carlos Zéfiro nasceu e morreu no Rio de Janeiro (1921-1992 – 70 anos).

2. Cassandra Rios nasceu e morreu em São Paulo (1932-2002 – 69 anos).

 

COM O SUOR DO ROSTO

Pequeno funcionário público lotado no Ministério de Trabalho, Alcides Aguiar Caminha, nosso Carlos Zéfiro, era casado e tinha cinco filhos.

Para aumentar a renda, dedicou 20 anos (1950 a 1970) a publicar e distribuir em bancas de jornais e revistas pequenos livretos entre 24 e 32 páginas, impressos em P&B, alguns dos quais alcançaram mais de 30 mil exemplares.

Durante esses anos de atividade guerrilheira, revolucionária e anarquista, criou mais de 500 folhetos, de alta voltagem erótica, com os quais incendiou a imaginação de milhões de adolescentes brasileiros (entre eles eu), que tiveram nele o primeiro e único professor de educação sexual naqueles velhos tempos repressivos e pré-minissaia.

Também parceiro de Guilherme de Brito e Nelson Cavaquinho, participou como letrista na criação de “A flor e o espinho”, canção que se tornou famosa. Entre outras.

Sua identidade só foi revelada em 1991, pelo jornalista Juca Kfouri, na revista Playboy, um ano antes de sua morte.

Para além da vida e da obra, fico imaginando como conseguiu aguentar a tensão de produzir e distribuir sua arte, sob o medo constante de ser preso como pornógrafo e, pior do que isso, ser demitido de seu emprego e principal ganha-pão, e ainda ser exposto publicamente como um pervertido que, se foi, terá sido apenas na imaginação.

 

TESÃO EM REPRESSÃO

Filha de imigrantes espanhóis, Odette Pérez Rios nasceu numa família de classe média alta e em 1948, aos 16 anos, publicou por conta própria o romance “A volúpia do pecado”, uma história de amor entre duas adolescentes. Uma loucura na época.

A matriz estava dada. Ao longo dos anos lançou outros 50 títulos, 36 dos quais proibidos, chegando a merecer o título de “escritora maldita”, que lhe foi imposto pela ditadura militar. Em 1976, teve 14 de suas obras censuradas, ou seja, proibidas.

Nunca fez outra coisa na vida além de escrever. Em 1970 alcançou a marca de um milhão de exemplares vendidos. Chegou a criar uma livraria, mas, por conta da perseguição de todos os tipos de censores imagináveis, acabou falindo.

Tornou-se famosa como precursora, participando de entrevistas e debates, alguns dos quais disponíveis na internet.

Como Carlos Zéfiro, foi guerrilheira, revolucionária e anarquista, mesmo tendo se queixado de ser rotulada “como cachaça de macumba” e dizer que “escondiam meus livros debaixo do colchão, meu nome virou palavrão”.

            Mas Alcides e Odette continuam vivos. Quando o antipresidente e seus bitolados coadjuvantes forem expulsos de onde não deveriam estar, esses dois guerreiros de nossa Revolução Cultural permanecerão vivos e ativos.

            O que os fascistas do Brasil e do mundo não souberam, não sabem e nunca saberão, é que a cultura sempre sobrevive, não só pelos que a expõem à luz do dia, mas também pelos que militam nos subterrâneos.

Sebastiao Nunes

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