Edgar Morin, um pensador próximo daquilo que chamam de “espírito do mundo”

Edgar Morin é um daqueles raros pensadores que conseguiu, como nenhum outro, abraçar a natureza, a vida, o conhecimento, as ideias, a humanidade e a ética

Por Antônio Sales Rios Neto*

Em A Terra É Redonda

“É evidente que não existe destino; também é evidente que, na ausência de qualquer destino, existem o ardil, a ilusão e o engodo” (Clément Rosset).

A crise gerada pela pandemia do coronavírus tem provocado um impacto tão profundo para a humanidade que tem despertado entre os grandes pensadores da atualidade um diálogo intenso e profícuo em torno das suas significações e similaridades históricas, dos prováveis e improváveis desdobramentos e, portanto, do potencial de mudanças paradigmáticas que ela enseja. Dentre esses pensadores, está o sociólogo, antropólogo e filósofo francês Edgar Morin, que, na sabedoria dos seus esplêndidos 98 anos, mantém-se lucidamente consciente quanto às incertezas, imprevisibilidades e potencialidades do curso da história e continua ativamente comprometido com suas convicções pela necessidade, mais do que urgente, da reforma do pensamento e da religação dos saberes, hoje ainda muito dispersos, e demasiadamente coerente com a visão complexa de mundo que concebeu ao longo de sua significativa trajetória de vida.

Inicialmente, é importante destacar que não sou exatamente um estudioso da abrangente e impactante obra de Morin. Meu interesse é mais voltado aos estudos do pensamento complexo, que também costumo chamar de paradigma emergente da complexidade, aplicados ao desenvolvimento humano e de empresas, instituições e sociedade. Por isso meu interesse no pensamento de Morin e de tantos outros que contribuíram e contribuem para o avanço das novas ciências da complexidade. Aqui no Brasil, talvez quem mais tenha se dedicado ao estudo e à difusão da vasta obra de Morin foi o antropólogo Edgard de Assis Carvalho, atualmente professor e pesquisador de antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e coordenador do Núcleo de Estudos da Complexidade e correpresentante da Cátedra itinerante da Unesco Edgar Morin. Assis Carvalho tem inúmeros trabalhos, livros, artigos, orientações de dissertações e teses na área da teoria antropológica contemporânea e antropologia dos sistemas complexos. Citaria ainda Maria Cândida Moraes, Ubiratan D’Ambrosio, Lia Diskin, Humberto Mariotti e tantos outros que deram e continuam dando valiosas contribuições para superarmos os reducionismos que impedem a emancipação humana.

A obra de Morin é gigantesca. Dentre os mais de 70 livros que escreveu, os seis volumes de O Método (A natureza da natureza, A vida da vida, O conhecimento do conhecimento, As ideias, A humanidade da humanidade, Ética), contendo mais de 2.500 páginas, explicitam e sistematizam o pensamento complexo de Morin, dando um sentido à vida e à ética do viver mais conectado com a complexidade do mundo real. Destaco também dois livros de Morin, um voltado para a educação e outro para a política, que me parecem centrais para o entendimento da necessidade de mudança de paradigma que os nossos tempos reclamam. O primeiro é o ensaio Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro (2000), que convida o atual sistema educacional, apropriado pela cultura patriarcal, que opera a partir de fundamentos meramente utilitaristas e só reforça ainda mais o exacerbamento do individualismo, a rever seus pressupostos e a buscar uma educação transformadora, mais centrada no desenvolvimento da compreensão da condição humana e na cidadania planetária, que nos permita lidar melhor com as múltiplas crises da atualidade. O segundo trata-se do livro Rumo ao Abismo? – Ensaio sobre o Destino da Humanidade (2011), o qual mostra o agravamento da crise mundial e a incapacidade do pensamento político atual de propor uma nova política de civilização que evite o mergulho no caos. Para Morin, precisamos abandonar o sonho de dominação e “substituir a noção de desenvolvimento pela de uma política da humanidade e a de uma política de civilização”.

Tive a grata oportunidade de conhecer Morin em 2010, aqui em Fortaleza, cidade onde resido, quando ele presidiu a conferência internacional intitulada Os sete saberes necessários à educação do presente. O resultado desse encontro ficou consignado na Carta de Fortaleza, a qual alertava que em nossa cultura “predomina um paradigma civilizatório insustentável, simplificador, individualista, mecanicista e fragmentador da realidade e do conhecimento, que nega a influência e o potencial das emoções, dos sentimentos e afetos, assim como os valores éticos, estéticos, espirituais presentes nos processos de construção do conhecimento”. Antes, também tive a grata satisfação de integrar e participar, por volta de 2008, representando o Brasil, do projeto La emergencia de los enfoques de la complejidad en América Latina, que tinha Morin como presidente honorário. A iniciativa representa talvez o maior trabalho coletivo sobre complexidade que integrou as iniciativas dispersas entre os países latinos, mediante a reunião de artigos de sessenta autores, contidos em mais de mil páginas, com três volumes publicados e mais dois em edição. Todos estão disponíveis com acesso aberto pela Comunidad Editora Latinoamericana. Também representaram o Brasil neste projeto os pesquisadores José Júlio Martins Tôrres, pela Universidade Federal do Ceará, e Sérgio Luís Boeira, pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Nos últimos dias, Morin concedeu quatro entrevistas* abordando as implicações do atual contexto de crise global gerado pela pandemia do coronavírus, nas quais percebemos a clareza e profundidade de sua visão de mundo, a multidisciplinaridade do seu conhecimento e, principalmente, sua lucidez intelectual acerca dos riscos e virtualidades implicadas na crise de civilização que tem nos assombrado nas últimas décadas. Dentre as várias reflexões que ele percorre, despertou minha atenção as valiosas lições da história que Morin sempre resgata para compreendermos as instabilidades e incertezas do momento presente. Segundo ele, “a primeira lição da história é que não aprendemos lições da história, que somos cegos para o que ela nos ensinou”. Perdemos nossa capacidade de autovigilância quanto às ilusões contidas na ideia de progresso e precisamos, hoje mais do que nunca, ficar alertas. Morin convidando-nos a “pensar que os períodos que parecem progressistas podem ser seguidos de regressão e barbárie, e que nem mesmo essa é eterna”. Enfim, sinto-me invadido por uma onda de esperança ao ver uma mente tão brilhante traduzir, em apenas quatro entrevistas, os grandes dilemas da condição humana.

Tento, a seguir, elaborar um mosaico das três principais lições que, na visão de Morin, têm conduzido, para o bem e o mal, o curso da história, e que novamente se sobressaem neste momento de crise gerado pela pandemia. Para não turvar as perspectivas que Morin nos oferece, este mosaico é montado a partir da transcrição literal de alguns excertos das mencionadas entrevistas, os quais, a meu sentir, traduzem as grandes contradições e possibilidades da História da humanidade.

As regressões

“Existem progressos possíveis, progressos incertos e todo progresso que não se regenerar degenera. Tudo pode regredir.”

“A unificação técnico-econômica do mundo, que trouxe o capitalismo agressivo nos anos 1990, gerou um enorme paradoxo que o surgimento do coronavírus agora tornou visível a todos: essa interdependência entre países, em vez de favorecer o progresso real da consciência e da compreensão dos povos, desencadeou formas de egoísmo e ultranacionalismo. O vírus desmascarou essa ausência de uma autêntica consciência planetária da humanidade”

“A convicção de que a livre concorrência e o crescimento econômico são panaceias sociais universais escamoteia a tragédia da história humana que essa convicção agrava.”

“Observo que a explosão descontrolada do desenvolvimento tecnoeconômico, animada por uma sede ilimitada de lucro e favorecida por uma política neoliberal generalizada, tornou-se prejudicial e provocou crises de todos os tipos. A partir desse momento, estou intelectualmente preparado para enfrentar o inesperado, para enfrentar convulsões.”

“O desenvolvimento econômico-capitalista, então, desencadeou os grandes problemas que afetam nosso planeta: a deterioração da biosfera, a crise geral da democracia, o aumento das desigualdades e as injustiças, a proliferação de armamentos, os novos autoritarismos demagógicos (com os Estados Unidos e o Brasil na cabeça). Por isso, hoje, é necessário promover a construção de uma consciência planetária sob sua base humanitária: incentivar a cooperação entre países com o objetivo principal de fazer crescer os sentimentos de solidariedade e fraternidade entre os povos.”

“Estamos em uma época regressiva. A regressão se manifesta com a crise das democracias que, em muitos lugares, inclusive na Europa, dá lugar a regimes semiditatoriais, na Turquia, Hungria, Rússia, um pouco também na Polônia. Uma tendência quase universal, à qual se soma o domínio de forças econômicas gigantescas, que nas atuais condições do neoliberalismo pesam sobre os povos que tentam se levantar, mas fracassam. Essas revoltas se esvaziam ou são esmagadas porque não há força para guiá-las, uma voz capaz de dar sentido ao futuro. Fatores negativos estão predominando.”

“Nós podemos temer fortemente a regressão geral que já estava em curso durante os primeiros 20 anos deste século (crise da democracia, corrupção e demagogia triunfantes, regimes neoautoritários, impulsos nacionalistas, xenófobos, racistas).”

“A loucura eufórica do trans-humanismo leva ao paroxismo o mito da necessidade histórica do progresso e do domínio do homem não apenas sobre a natureza, mas também sobre o seu destino, ao prever que o homem terá acesso à imortalidade e controlará tudo pela inteligência artificial.”

“Todas essas regressões (e, na melhor das hipóteses, estagnações) são prováveis enquanto não aparecer a nova via político-ecológico-econômico-social guiada por um humanismo regenerado. Esta multiplicaria as verdadeiras reformas, que não são cortes no orçamento, mas sim reformas de civilização, de sociedade, ligadas a reformas de vida.”

A incerteza

“A chegada do coronavírus nos lembra que a incerteza permanece um elemento inexpugnável da condição humana.”

“Poucos cientistas leram Karl Popper, que estabeleceu que uma teoria só é científica se for refutável, Gaston Bachelard, que colocou o problema da complexidade do conhecimento, ou Thomas Kuhn, que mostrou como a história da ciência é um processo descontínuo. Muitos cientistas ignoram a contribuição desses grandes epistemólogos e ainda trabalham de uma perspectiva dogmática.”

“Os conhecimentos se multiplicam exponencialmente, de repente, transbordam a nossa capacidade de nos apropriarmos deles e, acima de tudo, lançam o desafio da complexidade: como confrontar, selecionar, organizar adequadamente esses conhecimentos, conectando-os e integrando a incerteza. Para mim, isso revela mais uma vez a carência do modo de conhecimento que nos foi inculcado, que nos faz separar aquilo que é inseparável e reduzir a um único elemento aquilo que forma um todo ao mesmo tempo uno e diverso. Com efeito, a revelação fulgurante das convulsões que sofremos é que tudo o que parecia separado está ligado, pois uma catástrofe sanitária catastrofiza em cadeia a totalidade de tudo o que é humano.”

“A história também ensina como, em certo ponto, tudo parece entrar em colapso como, por exemplo, a romanidade; depois de um processo multissecular algo novo e revolucionário surge. Estamos em um mundo incerto e podemos imaginar um futuro em que forças catastróficas intervenham, mas a probabilidade nunca é certeza.”

“Como crise civilizacional, ela nos leva a perceber as carências em termos de solidariedade e a intoxicação consumista que a nossa civilização desenvolveu; e nos pede que reflitamos sobre uma política de civilização (“Une politique de civilisation”, com Sami Naïr, Ed. Arléa, 1997). Como crise intelectual, ela deveria nos revelar o enorme buraco negro na nossa inteligência, que torna invisíveis para nós as evidentes complexidades do real.”

“Essa epidemia nos traz um festival de incertezas. (…) Não sabemos se devemos esperar o pior, o melhor, uma mistura dos dois: estamos indo rumo a novas incertezas.”

O acaso

“Testemunhei tantos eventos imprevistos em minha vida – desde a resistência soviética na década de 1930 até a queda da URSS, para mencionar apenas dois fatos históricos improváveis antes que eles acontecessem – que faz parte do meu jeito de ser.”

“Ocasionalmente, um fator agradável e inesperado interfere, como a eleição do papa Francisco.”

“O acaso costuma intervir, mas é a complexidade dos fatores que operam na história que mais a modificam, eventos que fermentam e trabalham sobre a realidade. Gorbachev, por exemplo, quem esperava isso?”

“Antes da guerra, a dominação nazista na Europa parecia geral e o que fez as coisas mudarem? O Duce. Porque ele quis atacar a Grécia, mas foi parado pelo pequeno exército grego, então pediu ajuda a Hitler, que teve que adiar o ataque à URSS por um mês, previsto para maio de 1941, porque teve que combater a Resistência sérvia antes de conseguir plantar a bandeira da suástica na Acrópole. Assim, chegando aos portões de Moscou, o exército alemão ficou congelado por um inverno precoce. Mas se tivesse atacado em maio, teria tomado Moscou e o destino teria mudado.”

“A ciência é devastada pela hiperespecialização, que é o fechamento e a compartimentalização dos saberes especializados, em vez da sua comunicação. E são sobretudo pesquisadores independentes que estabeleceram desde o início da epidemia uma cooperação, que agora se alarga entre infectologistas e médicos do planeta. A ciência vive de comunicações, toda censura a bloqueia. Portanto, devemos ver as grandezas da ciência contemporânea ao mesmo tempo que as suas fraquezas.”

“Não sei qual improvável que possa aparecer hoje. Na história humana, no entanto, os dois inimigos irreconciliáveis, mas inseparáveis, que são Eros e Thanatos continuarão se enfrentando, e Thanatos não será capaz de destruir Eros ou Eros eliminar Thanatos. Cada um por sua vez assumirá o controle. Hoje os mais fortes são Polemos e Thanatos, mas não há eternidade na história.”

“O pós-epidemia será uma aventura incerta, em que se desenvolverão as forças do pior e as do melhor, sendo estas últimas ainda fracas e dispersas. Saibamos, enfim, que o pior não é certo, que o improvável pode advir, e que, no combate titânico e inextinguível entre os inimigos inseparáveis que são Eros e Thanatos, é saudável e enérgico ficar do lado de Eros.”

“A experiência das irrupções do imprevisto na história ainda não penetrou nas consciências. Ora, a chegada de um imprevisível era previsível, mas não sua natureza. Daí a minha máxima permanente: ‘Espere o inesperado’.”

Edgar Morin é um daqueles raros pensadores que conseguiu, como nenhum outro, abraçar a natureza, a vida, o conhecimento, as ideias, a humanidade e a ética, chegando talvez o mais próximo daquilo que alguns chamam de espírito do mundo. Se mais adiante evoluirmos para um futuro reconhecível, quando nos libertarmos das misérias, da ignorância e da estupidez que nos trouxeram até aqui, Morin será lembrado pela proeza de ter ajudado o ser humano a aceitar suas imperfeições e a se reconciliar consigo mesmo, com o outro, com a natureza e com a sua tão desejada liberdade.

*Antônio Sales Rios Neto é engenheiro civil e consultor organizacional

Referências

Entrevistas recentes concedidas por Edgar Morin:

CNRS / Le Journal, 09-04-2020: https://www.fronteiras.com/entrevistas/edgar-morin-as-certezas-sao-uma-ilusao

El país, 11-04-2020: http://www.ihu.unisinos.br/598089-vivemos-em-um-mercado-planetario-que-nao-soube-suscitar-fraternidade-entre-os-povos-entrevista-com-edgar-morin

Avvenire, 15-04-2020: http://www.ihu.unisinos.br/598144-existem-forcas-autodestrutivas-em-jogo-tanto-nos-individuos-quanto-nas-coletividades-ignaras-de-serem-suicidas-entrevista-com-edgar-morin

Le Monde, 20-04-2020: http://www.ihu.unisinos.br/598378-esta-crise-nos-interroga-sobre-as-nossas-verdadeiras-necessidades-mascaradas-nas-alienacoes-do-cotidiano-entrevista-com-edgar-morin

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