Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
[email protected]

Em “O Teorema Zero” Terry Gilliam revela seu niilismo gnóstico

Em “O Teorema Zero” (The Zero Theorem, 2013) Terry Gilliam retorna aos temas das produções anteriores “Brazil, O Filme” (1985) e Os 12 Macacos (1995), porém em um tom mais intimista e filosófico: enquanto espera uma misteriosa ligação telefônica que revelaria o verdadeiro sentido da vida, um analista de dados e programador é obrigado a comprovar matematicamente o contrário: que um dia todo Universo acabará sugado por um buraco negro e a vida não tem qualquer sentido ou propósito. Esse é o projeto secreto de uma gigantesca corporação, comprovar matematicamente o “Teorema Zero” – zero é igual a 100%. Gilliam vai abraçar alegremente esse niilismo gnóstico como a última esperança de libertação – zero é igual a 100% se aproxima da filosofia do filme “O Clube da Luta” de David Fincher: depois que perdermos tudo é que estaremos livres. Então encontraremos as respostas dentro de nós mesmos.

Quem não se lembra daquela situação nas aulas de álgebra e equações de segundo grau na escola onde você olhava para o enunciado da equação e intuitivamente já sabia o valor de X? Você escrevia X = 15, mas o professor não aceitava a reposta, embora correta, pois exigia que demonstrasse o método resolutivo que fez chegar ao resultado.

Pois é exatamente sobre isso que trata o novo filme de Terry Gilliam O Teorema Zero onde Christoph Waltz faz um “triturador de entidades” (Qoen Leth, um analista e programador de dados) que é incumbido de montar computacionalmente uma gigantesca equação cujos enunciados comprovem que 0 = 100%, ou seja, que todo o Universo um dia vai ser encolhido em uma pequena singularidade e engolir a si mesmo em um buraco negro. Colocado em termos filosóficos, ele deve comprovar matematicamente que a vida não possui qualquer sentido ou propósito, embora intuitivamente suspeite (e procure negar) isso.

O torturante conflito interior de Qoen em ser obrigado a participar de um projeto corporativo que vai contra todas suas esperanças lembra a famosa resposta do filósofo alemão Theodor Adorno (integrante da chamada Escola de Frankfurt) sobre o sentido da vida: “se você faz essa pergunta é porque intuitivamente suspeita que esse sentido não exista!”, proferiu certa vez o filósofo.

Gilliam ainda faz uma irônica alusão ao mundo em que vivemos imerso numa enxurrada de dados da Internet como a própria comprovação da ausência de sentido que homem procura através da tecnologia. Lembrando a velha Teoria da Informação que diferenciava mensagem/dados de informação, em O Teorema Zero as redes digitais nada mais fornecem do que uma caótica avalanche de dados onde caos e incerteza dominam. Internet é 100% de dados e mensagens, mas 0 de informação, uma quantidade caótica de dados aleatórios à espera de um filtro que reduza a incerteza.

Qoen vive trancafiado em uma igreja abandonada “triturando dados”, tentando encontrar a ausência de sentido, paradoxalmente por meio de algoritmos e equações que tentam encontrar o único sentido da existência: a sua ausência de sentido.

No mais filosófico filme da carreira de Terry Gilliam, o diretor dá um tratamento mais sofisticado à ideia central do antigo filme O Sentido da Vida do grupo inglês de humor Monty Python (do qual fazia parte): a vida é totalmente banal e sem propósito transcendente. Seu sentido se resumiria unicamente a “tentar ser bom, evitar comer gordura, ler um bom livro e caminhar regularmente”, como terminava concluindo cinicamente o filme de 1983. Paradoxalmente, Gilliam vai afirmar o sentido da vida por meio da sua própria negação.

Na filosofia, é a chamada via negativa: de um lado a Teologia Negativa (afirmar a existência de Deus por meio da sua negação) e do outro a Dialética Negativa (afirmar a existência de um sentido implica na intuição da sua inexistência). Essa espécie de niilismo filosófico acaba lembrando a máxima de Tyler Durden no filme O Clube da Luta “Depois que perdermos tudo é que estaremos livres” – isto é, a inexistência de sentidos ou propósitos divinos ou metafísicos nos daria a liberdade de construirmos um sentido realmente humano para a existência.

O Filme

O protagonista Qoen Leth parece o resultado do cruzamento do herói Sam Lowry (Brazil, O Filme) e James Cole (Os 12 Macacos): um programador operário de uma gigantesca corporação chamada Mancom (“Dá sentido às boas coisas da vida”, diz o slogan) angustiado à espera de um telefonema que supostamente lhe dirá o sentido da vida. Pela necessidade de ter que aguardar em casa esse chamado, Qoen propõe ao seu superior trabalhar em casa, fazendo upload do seu trabalho diretamente para o gigantesco mainframe da empresa – ou o “sexto sentido”, como diz o Administrador (Matt Damon).

“Não há lógica na perda de tempo de trabalharmos isolados em cubículos quando poderíamos aumentar a produtividade trabalhando em casa”, argumenta Qoen para o Administrador. Como condição para aceitar o pedido de Qoen, a empresa o coloca no projeto secreto Teorema Zero. A partir de então, Qoen ficará em casa diante do seu console retro-futurista lidando com equações tridimesionais, mas sempre a espera da ligação que supostamente lhe daria todas as respostas.

Interconectividade gera isolamento e solidão

Dessa maneira Gilliam inicia o filme com o tema de como o poder da interconectividade tecnológica atual pode produzir ao mesmo tempo isolamento e solidão. O homem depositaria na tecnologia toda a esperança de encontrar um propósito na existência, quando na verdade o isola cada vez mais.

Câmeras da Mancom monitoram 24 horas o trabalho domiciliar de Qoen, e uma psiquiatra on line tenta manter sua sanidade mental à distância. Muitos críticos observaram que O Teorema Zero parece ser o terceiro filme de uma trilogia composta por Brazil, O Filme e Os 12 Macacos. Gilliam parece revisitar todos os temas das produções anteriores (máquinas de vigilância, o homem contra o Estado, imaginação versus realidade etc.), porém com uma abordagem mais intimista e filosófica.

Para o diretor, o protagonista Qoen é a síntese do homem pós-moderno: vive em uma igreja abandonada infestada de pombas e tudo ao redor é formado por cacos de iconografias de um mundo que parece ter desmoronando e o sentido desaparecido. “Chateado com o Budismo? Não suporta filosofia religiosa? Então a Igreja do Batman pode ser a resposta”, diz um dos anúncios publicitários customizados que acompanham as pessoas nas calçadas no estilo do filme Minority Report.

A religião transformou-se em mais uma mercadoria à venda, associada a ícones pop. A mais simbólica imagem do filme é a estátua de Jesus crucificado no interior da igreja abandonada, cuja cabeça foi substituída por uma câmera de vigilância da Mancom, sempre monitorando o trabalho de Qoen. O poder de vigilância e controle da Igreja foi substituído pela dominação tecnológica das corporações. Em busca de um propósito da existência não mais através da religião, mas agora pela tecnologia, inadvertidamente o homem pulou da frigideira para cair no fogo.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

6 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. “que um dia todo Universo

    “que um dia todo Universo acabará sugado por um buraco negro e a vida não tem qualquer sentido ou propósito. Esse é o projeto secreto de uma gigantesca corporação, comprovar matematicamente o “Teorema Zero” – zero é igual a 100%. Gilliam vai abraçar alegremente esse niilismo gnóstico como a última esperança de libertação – zero é igual a 100% se aproxima da filosofia do filme.”

    Nem todos têm essa sensibilidade comparativa, mas esse teorema zero é igual a 100% é um plagio barato do sistema capitalista. 

  2. oba ! mais um filme para as férias

    Por influência do Wilson assisti ao filme Transcendence, gostei muito.Roteiro abusado que opera no limite do conhecimento humano e especula para além. Num cenário onde os filmes sci-fi se preocupam mais com a construção de personagens do que com o experimentalismo filosófico, Transcendence foi uma grata surpresa. Nestes dias preguiçosos de férias vou ver se baixo o Teorema Zero. 

  3. Esse tipo de filme, de

    Esse tipo de filme, de teoria, de filosofia é interessante por dois motivos: 1. se aproxima dos ensinamentos cristão – depois de perdemos tudo, seremos livres. E esse tudo inclui a propria vida. 2. mais e mais seres humanos passam a acreditar nessa teoria. De tudo resta o mais importante: o ser humano aos poucos e a cada dia passa a ter o instinto de sobrevivencia dimuido e com isso apressa a sua morte. Isto é positivo, altamente positivo, porque contribui para a diminuição de habitantes na Terra. No Brasil, temos como exemplo a banalização da violencia,até mesmo domestica, as tentativas de suicidio diarias e constantes do pilotos ou motoqueiros e de motoristas nas estradas e ruas do país.

  4. …a famosa resposta do

    …a famosa resposta do filósofo alemão Theodor Adorno (integrante da chamada Escola de Frankfurt) sobre o sentido da vida: “se você faz essa pergunta é porque intuitivamente suspeita que esse sentido não exista!”

     

    A eterna duvida… Os simpatizantes de Nietzsche, apesar de lamentar seu destino dramatico, muita vez o citam na busca incansavel deste misterioso sentido da vida.

    …a vida é totalmente banal e sem propósito transcendente. Seu sentido se resumiria unicamente a “tentar ser bom, evitar comer gordura, ler um bom livro e caminhar regularmente”

    “Depois que perdermos tudo é que estaremos livres”

    Em busca de um propósito da existência não mais através da religião, mas agora pela tecnologia, inadvertidamente o homem pulou da frigideira para cair no fogo.

    A vida é totalmente banal e sem propósito transcendente.

    É exatamente o contrario. O proposito da vida é exatamente transcender a condição animal que caracteriza o humano, assim como o homem trascendeu o animal.

  5. Agora entendi 50% do filme.

     

    Assisti na estreia, gostei mas não entendi direito, com esta analise algumas coisas se encaixaram, valeu!. Para mim a corporação era só mais uma religião tentando emplacar sua tese para angariar novos “clientes”. A crítica às religiões e aos dogmas que elas impõe aos  seus devotos é velada, mas estão em todas as partes, o Cristo crucificado com a câmera no lugar da cabeça é o máximo.

  6. e uma psiquiatra on line tenta manter sua sanidade mental à distância.

    Uma correção superficial… Na verdade não se trata de uma psiquiatra on-line, mas um programa de IA que simula a especialista.

    Eu vi o filme, mas não vi nenhum conflito existencial do programador com seu trabalho. Isto é, se alguém acredita em uma transcendência da existência, um conceito espiritual, qual problema do seu trabalho provar que a matéria não tem um propósito?

    Mas fica evidente a questão de que a crença dele o conforma a uma existência sem sentido, o que é dito explicitamente no filme. Ou seja, o falatório do buraco negro e todo o enredo técnico cientifico é questão aparente e no fim irrelevante. A questão central é o aspecto de que a ilusão em crenças “transcendentes” serve a nossa escravidão. E pode notar, nos três filmes do Guillian o herói termina sublimando no seu paraíso particular, no fundo uma mensagem melancólica mais do que qualquer esperança em haver uma salvação.

     

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador