Em “Vivarium” o micro e o macrocósmico se encontram na prisão da família e do casamento, por Wilson Ferreira

“Vivarium” (2019) é um curioso híbrido de ficção científica e terror, co-produção belga-irlandesa-dinamarquesa

Em “Vivarium” o micro e o macrocósmico se encontram na prisão da família e do casamento

por Wilson Ferreira

“Para onde foi todo mundo?”, pergunta-se um jovem casal que foi conhecer a casa perfeita para comprar em um subúrbio de classe média. Mas que se veem de repente presos em um misterioso labirinto em loop de casas idênticas, estranhamente hiper-reais, com suas cercas brancas, grama verde e um céu azul com nuvens perfeitas que lembram os quadros surrealistas de René Magritte. Será que estão presos em uma armadilha hiperdimensional? Uma metáfora da prisão do casamento e da família no qual o micro e o macrocósmico se encontram? Esse é o filme “Vivarium” (2019), um curioso híbrido de ficção científica e terror, co-produção belga-irlandesa-dinamarquesa. Um filme ambicioso que pretende explorar um grande arco simbólico que começa com o Paradoxo de Fermi na Cosmologia (“para onde foi todo mundo?”) até chegar as alusões ao pintor Magritte, ao misticismo do número nove e da cor verde que domina aquele subúrbio – a síntese do sonho da classe média americana. Filme sugerido pelo nosso colaborador Felipe Resende.

Primeiro físico a controlar a reação nuclear, Enrico Fermi observou que existia uma contradição entre o crescente conhecimento do Universo e a ausência de contato com qualquer forma de vida existente: com bilhões de outras galáxias lá fora, muitas delas bilhões de anos mais velhas que a nossa, pelo menos uma não poderia já ter entrado em contato conosco?

“Onde está todo mundo?”, indagava o físico. Isso ficou conhecido como “Paradoxo de Fermi”. Agora, imagine um filme que construa um arco simbólico que ligue esse paradoxo com a natureza sufocante do casamento em um típico subúrbio de classe média.

Temos então o filme Vivarium (2019), dirigido e escrito por Lorcan Finnegan, um curioso híbrido de ficção científica e terror – um jovem casal está à procura da casa perfeita para iniciar uma vida a dois. Um excêntrico corretor de imóveis leva o casal para conhecer um lançamento suburbano de um conjunto de casas que mais parece uma obra do pintor surrealista belga Renné Magritte. Essa alusão será importante na compreensão do filme.

Inadvertidamente, o casal se encontrará prisioneiro em um misterioso labirinto de ruas e casas idênticas que sempre parecem se fechar em loop – repentinamente o casal se descobre prisioneiro em alguma dimensão fora do tempo e espaço, na mais típica atmosfera da série clássica Além da Imaginação.

O primeiro mistério: são dezenas e dezenas de sobrados, idênticos a se perder no horizonte. Porém, todos vazios e trancados. Aparentemente, só eles ocupam uma casa (a número nove, outra alusão simbólica). Sob um perfeito céu azul ensolarado, salpicado de nuvens ao estilo das obras de Magritte. E nunca chove. Só eles parecem ocupar aquele vasto condomínio de labirintos infinitos. Onde está todo mundo?

Também parece que aquela imensa estrutura foi criada especialmente para eles. Condenados a criar um bebê que surge do nada e viver todos os tropos e clichês da típica vida conjugal de classe média numa atmosfera claustrofóbica e sombria. Contraditoriamente, num cenário perfeito. Hiperrealisticamente perfeito em um subúrbio moderno pré-fabricado em dry wall.

 A casa dos sonhos pode ser uma armadilha. A vida conjugal perfeita pode ser a prisão de uma rotina entediante e opressiva.

Como veremos, Vivarium é um filme simbolicamente ambicioso por tentar criar uma visão cosmológica integrada: macro e micro se encontram naquele subúrbio que mais parece lembrar a cidade cenográfica de Seaheaven do clássico filme gnóstico Show de Truman.

Assim como o Paradoxo de Fermi seria uma das evidências de que o Universo seria uma gigantesca simulação computacional para aprisionar a humanidade, da mesma forma a sociedade e, principalmente, sua célula central (a família e o modelo único de vida conjugal) seria um constructo de realidade para nos manter contidos e operacionais em um sistema.

Quem criou tudo isso? Quem nos observa, atentos em nos manter vivos dentro desse horizonte de eventos que chamamos de realidade? Esse é o mistério que permeia Virarium e aguça a curiosidade do espectador.

O Filme

O tema central de Vivarium é o típico subúrbio de classe média, símbolo do sonho americano de conformismo e alienação por trás de cercas brancas e gramados bem cuidados. Filmes como Blue Velvet, de David Lynch (uma orelha cortada achada no gramado é a ponta de um submundo muito além da normalidade) e Beleza Americana, de Sam Mendes (a descoberta do erotismo libertador para além da mediocridade cotidiana) são exemplos de narrativas de como necessidade s humanas podem ser suprimidas em relacionamentos coagulados.

Vivarium vai mais uma vez revisitar esse tema acompanhando o casal Tom (Jesse Eisenberg) e Gemma (Imogen Poots). Um casal comum: ela trabalha como professora em uma escola infantil – ama seu trabalho e ama crianças. Tom é um jardineiro que dirige para o seu trabalho, carregando suas ferramentas, no VW da mãe, embora planeje comprar um caminhão adequado.

Para eles, a vida e o trabalho ainda são divertidos nessa fase – nada ainda parece que foi oprimido pelo realismo das obrigações.

Até que um dia, depois da aula, Gemma encontra uma garotinha da sua turma muito triste: encontrou na grama um filhote de passarinho morto – parece que foi desalojado de seu ninho por um cuco predador (cuja ação predadora cruel vimos nos créditos iniciais). Esse início parece querer nos mostrar estranhos presságios para o que veremos adiante.

Pensando em morarem juntos para iniciar uma nova vida, eles encontram num estande de vendas um estranho agente imobiliário que os convence a visitar um lançamento chamado Yonder.

Chegando lá, vemos que Finnegan cria uma paisagem obviamente digitalizada de casas quadradas e idênticas pintadas de verde, criando uma pura hiper-realidade desorientadora. Visitando uma casa mobiliada, percebem que o corretor desapareceu… Bom, então vamos embora!, decidem.

Só que eles não conseguem mais encontrar a saída daquele labirinto de casas idênticas. Tom roda com o seu VW até a noite cair e a gasolina acabar. Eles apenas andaram em círculos, sempre parando em frente a casa número 9, na qual parecem terem sido condenados a morar para sempre.

Estranhas caixas de papelão surgem diariamente do nada na porta da casa, com alimentos congelados ou acondicionados à vácuo.

Até que um dia, chega mais uma caixa de papelão… dessa vez com um bebê com um bilhete: “Cuidem dele, para depois liberá-lo”.

A partir desse ponto, a dinâmica de Tom e Gemma naquela casa, cuidando do bebê, começa a assumir todas as situações e clichês do casamento: ela, cuidando do “pequeno mutante” (uma criança que cresce mais rapidamente do que o normal, tenta imitar as palavras e comportamentos dos “pais” e dá um grito ensurdecedor quando está com fome e reivindica comida) e Tom cavando obsessivamente um buraco no jardim para tentar encontrar uma saída daquele mundo.

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Redação

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