Fervor e tradição: as Festas do Rosário de Nossa Senhora da Penha, por Jorge Henriques Bastos

"Tudo acontece no largo diante da Igreja. Ao ser levantado o mastro de São Benedito, os festejos começam e se prolongam nas semanas seguintes"

Por Jorge Henriques Bastos

A Penha é um dos bairros mais antigos de São Paulo. Tornou-se parte da Zona Leste após o crescimento da capital. Todos os anos, no mês de junho, a Igreja do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França se engalana. É quando tradição e história se espalham pelas ruas: são as Festas do Rosário.

Tudo acontece no largo diante da Igreja. Ao ser levantado o mastro de São Benedito, os festejos começam e se prolongam nas semanas seguintes, dando continuidade a uma tradição secular.

Construída em 1802, a Igreja é um exemplo genuíno da traça arquitetônica colonial paulista, e está situada no local de origem. Foi erguida em taipa de pilão, apresenta uma nave, capela-mor, galeria lateral e sacristia. É simples, como os homens negros daquela época, que suaram e se cotizaram com o pouco que tinham para erguê-la.

Em contraponto aos parcos recursos que possuíam, a fé foi a riqueza que moveu os seus músculos para suplantar as dificuldades. Até hoje ela se manifesta nos festejos que animam a região.

A festa permaneceu interrompida durante décadas. Apenas em 2002, à beira da Igreja completar duzentos anos, foi criada a Comissão do Rosário dos Homens Pretos da Penha, responsável por capitanear a revivescência do evento. Retomar a tradição era, em simultâneo, celebrar a presença afro-brasileira, revelando a preponderância de um patrimônio que não é só material.

A festa em si abriga peculiaridades históricas que se perdem no tempo. O historiador e crítico musical, José Ramos Tinhorão, em várias das suas obras, já acentuara certos aspectos que compõem a Congada, que chega ao Brasil com os escravos vindos da África. Segundo Tinhorão, Portugal utilizou-se de um simulacro – a nobiliarquia dos Sobas como “reis” do Congo, algo alheio à sua cultura – a fim de estabelecer a Coroa na costa africana. Este artifício se transplantou para cá via imaginário dos escravos e, ao assistirmos tais festejos, vemos se reproduzir simbolicamente aquela estratégia colonial lusitana. Assim como testemunhamos a história transformada em folclore. Mas também é resistência e fervor.

A festa começa no primeiro domingo de junho, com o levantamento do mastro, culminando no dia 21, com a coroação dos “Reis da Festa”. Então entram em cena dezenas de agrupamentos populares, oriundos de São Paulo e Minas Gerais, por exemplo.

As ruas em torno da pequena Igreja se enchem de ônibus que trazem os grupos. Um desfile de Congadas, Moçambiques, Maracatus e Folias acaba colorindo as calçadas logo pela manhã. Os estandartes e os corpos balançam sob os ritmos dos tambores, atabaques, caixas e timbas que ecoam pelas adjacências; roupas brilhantes estampam o asfalto. A mescla de sons aumenta e acompanha o barulho dos carros que passam.

O exemplo do sincretismo brasileiro se reproduz aqui. O altar católico deixa as dependências do edifício religioso e é colocado no meio da praça. Uma missa afro é rezada, seguida pela coroação do casal que encarnará os reis da festa.

Um rosário gigante pende sobre o frontão da Igreja. Eis um pormenor remoto, e mais uma vez nos socorremos do historiador. Segundo Tinhorão, uma hipótese para explicar a devoção dos negros por Nossa Senhora do Rosário, em Portugal, deve-se ao colar de contas que caracteriza a santa, remetendo aos búzios presentes em suas tradições. Ou seja, tornar-se devoto de Nossa Senhora do Rosário era o mesmo que honrar os seus deuses originais.

Quem já visitou Lisboa, talvez tenha tido a oportunidade de ver que, no Rossio, uma das praças principais da cidade, muitos africanos se reúnem no perímetro. Próximo daí, numa rua paralela à praça, existe a Igreja de São Domingos, onde há uma imagem de Nossa Senhora com um rosário, e que pode ter sido aquela que os primeiros escravos passaram a prestar devoção. Não podemos esquecer ainda que as Irmandades dos Homens Pretos surgiram inicialmente na capital portuguesa, só depois chegaram aqui.

Portanto, a partir da astúcia lusitana para estabelecer seu domínio no continente africano, ao ingressar no Brasil, através dos costumes do povo escravizado, a tradição se populariza e adota novas expressões, vivas até a atualidade, com múltiplas nuances e especificidades.

Ao longo dos dias, a festa recebe grupos, associações, coletivos artísticos e muita gente anônima, ávida por ver gêneros de folguedos que poucos conhecem. Dessa maneira, as tradições se revigoram, resistindo ao tempo e aos homens.

Redação

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