Michel Foucault e o “Navio dos Loucos”

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Navio dos Loucos ou A Nave dos Loucos é uma pintura do artista flamengo Hieronymus Bosch (1450 — 1516)

vídeo – transcrição da tradução da fala de Foucault, dos min. entre 10:14 à 13:50:

(…) Há um tempo, desde a Idade Média aquilo que chamamos de missa da alma, onde, um poucos antes ou depois há a festa dos loucos, missa caricatural de figuras grotescas a saborear e a desejar, colocando por um dia o mundo ao inverso.

Era como uma grande missa satânica mais multicolor que negra, mas mascarada e matizada que realmente secreta. Era já o carnaval.

A loucura fascina porque é um saber. É saber, de início, porque todas essas figuras absurdas são, na realidade, elementos de um saber difícil, fechado, esotérico. Este saber, tão inacessível e temível, o Louco o detêm em sua parvoíce inocente. Enquanto o homem racional e sábio percebe apenas algumas figuras fragmentárias, e por isso mesmo mais inquietantes, o Louco o carrega inteiro em uma esfera intacta: essa bola de cristal, que para todos está vazia, a seus olhos está cheia de um saber invisível.

Outro símbolo do saber, a árvore: a árvore proibida, a árvore da imortalidade prometida e do pecado, outrora plantada no coração do Paraíso terrestre, foi arrancada e constitui agora o mastro do navio dos loucos. O que anuncia esse saber dos loucos?

Sem dúvida: uma vez que é o saber proibido, prediz ao mesmo tempo o reino de Satã e do fim do mundo.

Não há civilização sem loucura. Essa parte de sombra, ou se vocês preferirem, de iluminação, ela acompanha o homem por todo lugar onde haja imposição de limites, onde se estabelecem instituições, onde leis sejam fixadas, cada vez, sem dúvida que ele fala. Há civilizações onde a loucura é parente próxima da religião; em outras, ela se aparenta, ao contrário, à magia ou ainda à medicina.

Perto de Dacar Jean Rouch filmou “A Consumação do Cachorro”, uma paródia demente da sociedade colonizadora pelo povo colonizado. Um verdadeiro sabá (saber?) como o de nossas feiticeiras, um nome talvez nunca celebrado, mas fomos nós que trouxemos com nossos governantes, nossas locomotivas, nossos maus comandantes, essa besta enforcada e crucificada, em comunhão sob duas espécies, a desordem e a carne do cachorro. E o governador reuniu uma nova conferência à mesa redonda. É a conferência do cachorro. Todos os youkas vieram. É preciso sacrificar o cachorro, comê-lo. O capitão vai fazer o sacrifício. Esse homem tranquilo vai degolar o animal para evitar que haja acidentes. O governador diz: “Seja prudente”. E o general diz: “Seja prudente”. O animal pouco após ser degolado, para o qual se precipitam para beber o sangue e para lamber a pedra.

A experiência clássica da loucura nasce. A grande ameaça surgida no horizonte do século XV se atenua, os poderes inquietantes que habitavam a pintura de Bosch perderam sua violência.

Redação

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