Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Mitologia e religião no Oscar 2013 em uma sociedade cética

O nosso leitor Giordano Cimadon da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba indicou o artigo de S. Brent Plate (professor de Estudos Religiosos da Hamilton College – EUA) “Religion at Academy Awards” sobre a intensa presença de temas, símbolos e alegorias religiosas nos filmes que estão disputando o Oscar desse ano. Para Plate, a indústria do entretenimento parece ultrapassar as instituições religiosas como a principal criadora de mitos e rituais em uma sociedade que, paradoxalmente, cresce o espírito de ceticismo e aversão às religiões organizadas. Filmes como “As Aventuras de Pi”, “Django Livre”, “Indomável Sonhadora” e “The Master” exploram antigas simbologias míticas como as da água, enchentes e caos, e bíblicas onde compaixão, vingança e justiça divina se entrelaçam de forma inextrincável.

Em postagens anteriores falávamos de uma “guinada metafísica de Hollywood” (veja links abaixo) a partir de uma série de filmes cujos roteiros e argumentos se inspiravam em antigas narrativas míticas do Gnosticismo – conjunto de seitas sincréticas do início da era cristã que davam uma interpretação mística de Cristo. Filmes como “Show de Truman”, “Matrix”, “Vanilla Sky” entre outros criaram uma coerente recorrência de personagens, temas e simbolismos gnósticos.

Mas Plate parece demonstrar um fenômeno diferente no artigo que reproduzimos abaixo: um sincretismo de simbologias, temas e rituais de religiões institucionalizadas e mitologias antigas, tudo cimentado pela auto-ajuda e a crença no trabalho duro do herói – ideologia do “self made man” americano? É o que chamaríamos de “ecumenismo pós-moderno”. O mesmo sincretismo desesperado do protagonista Pi em “As Aventuras de Pi” que misturava práticas cristãs com hinduísmo e islamismo em busca de algum sentido. É o paradoxo descrito por Plates em um mundo onde as religiões institucionalizadas decrescem na proporção inversa do crescimento do “espiritualismo”.

Religion at Academy Awards

S. Brent Plate

(The Huffingston Post, 03/02/2012)

 

No momento em que reverenciamos uma estátua dourada chamada Oscar em rituais de exaltação a um santo despido enquanto lemos as nossas sagradas colunas de fofocas, podemos parar para refletir sobre o lugar permanente dos temas e alegorias religiosas nos filmes que disputam o prêmio desse ano. Mais uma vez os filmes indicados ao Oscar deste ano estão repletos de referências religiosas demonstrando que a indústria do entretenimento parece ultrapassar as instituições religiosas como a principal criadora de mitos e rituais em uma sociedade onde os “céticos” ou “não-religiosos” estão em ascensão.

“Os Miseráveis”: música e alguns rostos bonitos
ajudam a tornar viúvas, órfãos e 
ladrões mais suportávei
s

O desejo por algum tipo de redenção na vida humana através de veículos como “graça”, “karma”, ou simplesmente o trabalho duro, é fortemente explorado por Hollywood. Os caras realmente maus merecem o seu lugar na cova, mas muitos miseráveis ainda podem ser salvos. Comentando sobre seu romance, “Os Miseráveis”, Victor Hugo notou como o enredo “se move do mal para o bem … do nada a Deus.” Mas, aparentemente, a simplicidade desse  arco narrativo não é o suficiente para o público contemporâneo. Por isso Hollywood, via Broadway, acrescenta música. Algumas músicas, shows e alguns rostos bonitos ajudam a tornar as viúvas, os órfãos e os ladrões suportáveis, abrindo nosso caminho à redenção.

“Django Livre”: Bíblia e vingança

Mas, se os caras maus são feios tanto no rosto quanto no espírito, podemos nos deliciar com a mais dura justiça. “Django Livre” foi, de acordo com um crítico de destaque, um “prazer narcótico e delirante”. O encontro do gênero spaghetti-western com a violência explosiva de Quentin Tarantino levanta questões sobre o papel da violência e o lugar da religião na criação desta nação. Duas cenas trazem isso para o campo religioso. A primeira ocorre no início, quando um traficante de escravos leva em torno de uma Bíblia um chicote, citando algumas passagens sobre a justiça das escolhas de Deus. Várias páginas de uma Bíblia estão presas ao seu corpo quando Django (Jamie Foxx) atira nele. A página que está sobre o seu coração onde se lê “couraça da justiça” (Isaías 59,17) se torna o alvo de uma bala.

A cena corolária vem no final, quando o Django inicia uma séria revanche. Quando Django se prepara para descarregar balas nos corpos dos escravagistas, a letra da música neo-soul de John Legend (“Quem fez isso com você?”) lembra-nos que toda vingança é do Senhor “Mas eu vou fazer isso primeiro”, pois “meu julgamento é divino “, diz Django.  As implicações são claras: Django encarna a vingança de Deus. E quando os irmãos Brittle tombam mortos, Django proclama: “Eu gosto do seu jeito de morrer, rapaz”, uma afirmação que se torna também o grito narcótico e delirante do público.

A vingança de Django não está muito longe da história do abolicionista cristão John Brown, que pegou nas armas no mesmo período histórico em que a narrativa de “Django Livre” foi definida, na véspera da Guerra Civil.  Brown afirma: “Tenho pena do pobre no cativeiro que não dispõe de qualquer ajuda: é por isso que eu estou aqui, não para satisfazer qualquer animosidade pessoal ou espírito vingativo.” Após uma fracassada tentativa militar em roubar armas do arsenal Harper’s Ferry, Victor Hugo publicou uma carta buscando perdão a Brown. Caridade cristã, atitudes em relação ao oprimido e a violência se misturam de uma forma difícil de se separar.

Certa vez T.S. Eliot poetizou sobre o poder do “estranho deus marrom”, que é um rio, e como na modernidade nos esquecemos desse poder quando nós construímos pontes sobre ele. Até que um dia ele se enfurece, se levanta e destrói. A água pode limpar, mas mitos após mitos religiosos (e não apenas a respeito de Noé) apresentam a água como portadora da morte. Inundações representam o caos em erupção a partir do profundezas,  ultrapassando a ordem cósmica da terra dos vivos. Ambos os filmes “Indomável Sonhadora” (Beasts of the Southern Wild) e “As Aventuras de Pi” (Life of Pi) bebem nessas antigas fontes históricas, levando-nos de volta ao primitivo, ao destrutivo e, finalmente, ao poder recriador de água.

“Django Livre”: Django encarna a 
vingança de Deus

A grande divindade Vishnu domou o caos do mar infinito reclinada sobre a parte de trás da serpente do mar Shesha. Uma imagem que descreve esse mito é mostrada no início do filme dirigido por Ang Lee “As Aventuras de Pi”, uma história que se desenrola através do jovem protagonista Piscine Monitor ou “Pi” (Suraj Sharma), a bordo de um bote salva-vidas com um pouco domesticado tigre. As águas se enfurecem e matam sua família. Pi sobrevive à jornada do herói através de um oceano de tubarões, ilhas carnívoras, e, oh!, sim, o Tigre. Ele é atraído para rituais e tradição, e alegremente sincretiza elementos hindus, muçulmanos e práticas cristãs. O que fica na sua garganta é mais a ausência do ritual, os obstáculos para as cerimônias que preveem coisas até o fim, permitindo um cosmos em face do caos. Quando é deixado sem as instituições e comunidades que ajudam a promover tais atividades, o significado está perdido.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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