Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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No Filme “Sr. Ninguém” o Tempo é uma Falha Cósmica

O que há em comum entre a Teoria das Cordas da Cosmologia, o Efeito Borboleta da Teoria do Caos, Futuros distópicos, a possibilidade da quase imortalidade, Entropia e a flecha do tempo, a impermanência da memória, morte, amor, segunda chance, missões para Marte e mágoas de um divórcio? Para o filme “Sr. Ninguém” (Mr. Nobody, 2009), do diretor belga Jaco Van Dormael, são partes de um mesmo continuum: um protagonista (Nemo – Jared Leto) prisioneiro em um cosmos condenado luta contra a flecha do tempo e a entropia (todos os eventos são irreversíveis, tendem para o futuro e para um estado de dissipação de energia e desordem).

“Sr. Ninguém” é um surprendente filme que parece se inspirar nas fontes mitológicas do Gnosticismo: um protagonista prisioneiro na principal falha cósmica do universo físico (a flecha do tempo) vê sua existência como um gigantesco hipertexto com diversos futuros alternativos resultantes das decisões. O filme narra a luta de um homem contra o caos e o aleatório que interferem no livre-arbítrio das decisões.

Em 2089 um psiquiatra e um jornalista tentam compreender o mistério da vida de um homem centenário (Nemo) e submetem-no a uma “antiga técnica”, a hipnose, para fazê-lo retroceder em sua memórias e estabelecer uma sequência linear até o momento atual. Porém, o que eles conseguem e nós espectadores testemunhamos, é um imenso painel com linhas de tempo alternativas, como fossem hipertextos, onde cada escolha altera o futuro, pulando sucessivamente entre futuros alternativos assim como um trem pegando diferentes desvios entre linhas paralelas (imagem simbólica recorrente no filme).

Também Nemo é o último ser mortal. Nesse tempo que para nós é futuro, descobriu-se um meio de preservar as células, evitando o envelhecimento, e as pessoas estão curiosas em saber como é que se….morria.

A partir dos fragmentos da memória de Nemo, basicamente há três futuros alternativos constituídos a partir de três escolhas amorosas na adolescência que resultam em três casamentos diferentes. Tudo isso marcado pela mágoa da escolha impossível submetido no momento do divórcio entre seus pais: numa estação de trem teria que escolher com qual ficar. Ou com sua mãe que partiria no trem ou ficar com seu pai, na plataforma da estação.

Mas Nemo tem uma qualidade especial que torna a consciência de que a vida é feita por escolhas muito mais aguda e sofrida: ele foi esquecido pelos anjos antes de nascer e, por isso, não o concederam a “dádiva” do esquecimento.

Nemo narra em off que antes de nascermos sabemos tudo o que ocorrerá. Porém, antes, os anjos do céu colocam o dedo em nossos lábios, significando que esqueceremos tudo. Mas esqueceram de fazer isso com Nemo, que vem para a Terra com uma capacidade de prever o futuro resultante de cada simples escolha.

Por isso Nemo navega pela sua vida como um internauta em um hipertexto. As escolhas, desde as mais simples, como qual doce pegar numa festa de aniversário, até as mais complexas como, por exemplo, escolher com qual menina namorar, torna-se para ele impossível, já que todas as alternativas se equivalem, pois todas tendem para um único destino: a entropia, a dissipação, a crescente desordem e a morte.

Um tema difícil, abstrato e metafísico para ser trato em uma narrativa visual. Mas Van Dormael aborda o tema de forma surpreendente ao convergir linguagens de diversos gêneros como o Documentário, Ficção Científica, Realismo Fantástico e Romance. Apesar da sucessão dos instantes dos futuros alternativos na vida de Nemo, Van Dormael preenche cada plano com uma riqueza de detalhes e recursos estilísticos (fotografia, cor, slow motion etc.), dando intensidade emocional a cada simples momento, marcando o brilho e a importância de cada instante, embora todas as escolhas, no final, se igualem.

Mitologias Gnósticas

Fica evidente nas duas horas e treze minutos de “Sr. Ningém” que o roteiro de Van Dormael bebeu em fontes gnósticas. Se não leu textos gnósticos, o que é mais provável, o diretor provavelmente se sintonizou na mitologia gnóstica persistente nos tempo atuais por meio do repertório arquetípico que define a sensibilidade contemporânea.

Em primeiro lugar, o filme é carregado de referências à física quântica, teoria do caos e termodinâmica. Todo esse mix científico para confirmar a suspeita gnóstica: sim, Deus joga com dados o jogo do Universo, o cosmos é caótico, tende para um progressivo estado de desordem devido a um problema básico: a flecha do tempo. Não somos senhores de nossos atos, tudo depende de fatores imprevistos (como a sequência da gota de chuva que cai no papel – alteração climática provocada por um simples gesto de um desempregado do outro lado do mundo – que borra o número do telefone que o impedirá de encontrar Anna, criando mais um futuro alternativo).

A consciência aguda de Nemo o faz tomar consciência dessa imperfeição cosmológica. Como obra de um Demiurgo e não de Deus, o cosmos físico sempre será uma cópia imperfeita dos níveis superiores da Plenitude. O tempo e o devir são as principais imperfeições que aprisionam o homem nesse cosmos.

Em segundo lugar, o tema do esquecimento. O filme apresenta Nemo com outras crianças, antes do nascimento, em um fundo infinito, branco. “Antes de nascermos sabemos tudo que vai acontecer”, diz Nemo em off, no início do processo de regressão hipnótico ao qual é submetido no futuro de 2092. Pouco antes de nascermos “os anjos dos céus” nos impõem o esquecimento para, então, sermos enviados para a Terra. Na vida, passamos a acreditar naquilo que é descrito na epígrafe com que abre o filme: a “supertição da pomba”.

Acreditamos que os nossos atos influenciam os acontecimentos, ideia desmentida pela consciência aguda de Nemo de que, na verdade, somos joguetes de fatores aleatórios. O esquecimento não nos permite ver essa inconsistência da realidade física.

E terceiro, e mais decisivo elemento gnóstico do filme “Sr. Ninguém”: o caráter artificial da realidade. Nemo é o clássico protagonista dos filmes gnósticos, prisioneiro é um constrctu artificial de uma realidade (há momentos “Show de Truman” no filme como sequências em que ele descobre que tudo ao seu redor – objetos, prédios – não passa de cenografia). O esquecimento imposto pelos “anjos do céu” (na verdade os Arcontes da mitologia gnóstica) e a imperfeição temporal nos faz sermos apegados a uma realidade que acreditamos ter controle.

Por isso a clássica exortação gnóstica “Acorde!” (repetida em diversas formas, sempre de passagem, ao longo do filme) para a necessidade do homem despertar do sono do esquecimento.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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