O cão de Pavlov e o atendente de farmácia, por Daniel Gorte-Dalmoro

O cão de Pavlov e o atendente de farmácia

por Daniel Gorte-Dalmoro

Em um de seus experimentos sádico-científicos, Pavlov tocava uma sineta antes de aplicar um choque em um cão, que chorava por conta do sofrimento causado pelo choque. Passado um tempo, o cachorro já começava a chorar só de ouvir a sineta – muitas vezes sequer recebia o choque. Ainda mantendo a associação entre sineta e choque, passado outro tempo, o animal se habituava: ouvia sineta e tomava choque sem reclamar – bovinamente, diríamos hoje.

Não vivemos em laboratório, onde as variáveis estão controlada (ou ao menos assim dizem os cientistas), nem somos cachorros (por mais que no Brasil tenha “pet” que leve vida melhor que boa parte da população humana), mas nosso viver no automático nos leva para um ponto não muito longe dos experimentos pavlovianos – para alegria de publicitários, jornalistas, políticos e engenheiros sociais em geral. Meu exemplo é banal.

Uma amiga pediu para acompanhá-la na Farmácia de Alto Custo, do governo do Estado em parceria com a SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina), que fornece gratuitamente remédios caros à população. Tinha medo de ir sozinha na farmácia, situada na região do baixo do Glicério, na várzea do Carmo, próximo à estação Pedro II do Metrô. Deveras, em meio a viadutos, mendigos, moradores de rua, usuários de drogas pobres, catadores de recicláveis, igrejas, migrantes, imigrantes e outros desvalidos da sorte, não é um local que a classe média se sinta em casa para uma caminhada. Meu cacoete de classe média logo fez com que me questionasse (não verbalizei, para não melindrar minha amiga) por que ela não comprava o medicamento, já que não é tãããao caro assim, e ainda que fosse pesar no seu orçamento, não implicaria cortar de nenhum gasto essencial. Meu anti-cacoete-classe-média logo me lembrou da grande besteira ideológica pequeno burguesa tropical essa ideia de que serviço público é para pobre e não para todos – tirando, claro, a universidade pública e o terceiro nível do SUS, porque aí a classe média não conseguimos bancar sem cortar de algum lado, e então fazemos questão de usar o serviço do Estado, disputando com pobres, porque é nosso direito. E é. Se acesso à saúde é um direito universal garantido pela Constituição, bem faz minha amiga de exigir seu direito, ao invés de pagar por uma relativa comodidade.

O serviço da farmácia pareceu bem organizado, e nesta quarta-feira de cinzas, rápido. Enquanto esperava minha amiga ser atendida, reparei no espaço, que desde que entrara, algum estranhamento me causava. O local era limpo, sinalizado com cores, mas havia algo fora da familiaridade classe média a que estou acostumado. Imaginei que talvez fosse a pintura, que não estava tinindo, como em grandes redes de farmácia ou nos McDonalds médicos que vejo no centro da cidade (sem desmerecer o lanche do Mc, que é ruim mas não para tanto). Talvez a falta de cores fortes preenchendo grandes espaços. Ou um televisor gritando rede Globo ou publicidade? A falta de uma logomarca grande chamando a atenção e uma placa bem a vista com a missão do estabelecimento? Reparei nos atendentes. Estavam todos de preto – incomum para um ambiente de saúde, mas não era isso. Notei que uma delas tinha a marca estampada na roupa, outra uma frase brega, o rapaz que entregava as senhas, camisa de jogo de RPG. Passou por mim a moça da faxina, roupa da terceirizada. Entendi, então, meu estranhamento: os serviçais, salvo da faxina, não estavam uniformizados.

Admito um certo choque ao perceber como naturalizei a visão do uniforme em quem me atende. Passa-se a ideia de profissionalismo, dizem. Diria mais: passa-se a ideia de quem está na sua frente não é bem uma pessoa, mas o meio termo entre um homem ou uma mulher e um androide – na impossibilidade, por enquanto, de serem substituídos por robôs de verdade.

Entendo a necessidade de uniforme em muitas situações – escolas ou fábricas, por exemplo. Durante a idade escolar e ainda hoje sou grande defensor do uniforme: me poupa de pensar nessa maçada que é que roupa vou usar, se já não usei ela semana passada ou coisas do tipo. Porém sou homem, branco, classe média alta: socialmente valho por pessoa por meu fenótipo e renda, ainda que muitos de meus colegas de classe sintam necessidade de se afirmar por outros meios também – carro, restaurantes, roupas, viagens. 

Mesmo o uniforme para minha classe – o terno – é socialmente valorizado como nobre, com “personalidade”.
A situação é diferente na “ralé”, como chamou Jessé Souza, e noto como o uniforme de trabalho para essas pessoas tem um aspecto perverso: uma das grandes molas propulsoras do capitalismo espetacular está no vestuário, na moda – isso vem do século XIX, como atesta a literatura. Geralmente as pessoas que fazem o atendimento ao público são pessoas que tiveram menos oportunidades de educação e, consequentemente, de um melhor emprego. São vistos como semipessoas, semicidadãos pelos homens e mulheres “de bem” desta terra do “você sabe com quem você está falando?”. Usar uma marca é uma tentativa de ganhar a parte da humanidade (ou toda ela) que lhes foi negada: foi uma das coisas que me chamou a atenção nos imigrantes na Missão Paz, ali perto da Farmácia de Alto Custo, no Glicério; ou o que se lê em romances do Ferréz ou nas letras dos Racionais, por exemplo. Não apenas isso: ideologicamente há a ideia – aceita acriticamente até por gente que se acha crítica – que marca, roupa, estilo, é parte da personalidade de alguém, quando não a define na essência. Portanto, ao serviçal, já considerado semigente, é também recusada a expressão da sua personalidade espetacular. Não é alguém por completo, nem tem direito de tentar sê-lo – tal qual o patrão ou os clientes brancos, classe média, cheios de estilo, que exigem serem recebidos com robóticos “bom dia” por pessoas uniformizadas – ironicamente, as gravações do atendimento no telemarketing tem mais vida e personalidade que os atendentes de carne e osso, que soam submissos serviçais zumbis do outro lado da linha.

Comento esse exemplo banal do desnecessário uniforme para atendentes. Vamos no automático, mal enxergamos, quando vemos, ainda achamos que tem pontos positivos, logo vira natural – pode um atendente sem uniforme? O caso poderia ser levado a outros aspectos do nosso quotidiano, mais emblemáticos. A violência que está aí, como o sol da manhã, a polícia que faz abordagem com arma na mão e dedo no gatilho às três da tarde no centro, os assassinatos pelos policiais, os policiais assassinados – tudo normal, pessoas tombam ao nosso lado, mas a vida segue. Ou o golpe de Estado e todo o desmonte do pacto social que vivenciamos: algum incômodo de início, alguma revolta, mas aos poucos vamos aceitando a sineta e o choque, no máximo engolimos a amargura e temos uma gastrite, camuflada com qualquer narcótico, tudo sem mudar de ritmo, sem perturbar a rotina – afinal a vida é assim,  não? E fugimos de enxergar se ela deveria mesmo ser assim.

14 de fevereiro de 2018

Redação

2 Comentários

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  1. Os grandes precisam dos pequenos para engrandece-los.

    Artigo gostoso de ler, caro Dalmoro.

    Lembrei da história do sapo que morreu cozido porque a água em que estava megulhado, até ferver, foi aquecida aos poucos. A investida atual do capital privado sobre o público sabe disso. Por isso, diferentemente do que fez aqui em ’64 ou pior, com o AI-5 em ’68, quando jogou água fervente sobre a delicada pele da Democracia, as pessoas que operam o golpe – e o capital privado – dessa vez estão aquecendo nossa água aos poucos.

    Sem teorias da conspiração acho que dá para perguntar: quem são as tais pessoas que operam o golpe – e o capital privado? Será que temos nós, classe média, alguma participação, alguma responsabilidade sobre o golpe? Enfim, operamos o golpe – e o capital privado – de alguma forma? Se sim e considerando que não há um único exemplo em que alguma sociedade, em qualquer tempo ou lugar, se deu bem ao deixar os operadores do capital privado fazerem o que quiserem – o resultado de tal liberalidade é sempre pobreza, dor, choro e ranger de dentes – até quando manteremos o temor de adotar nova postura? A que temperatura da água decretaremos definitivamente a nós mesmos que é hora de mudar? Quando perceberemos que enquanto continuarmos engrandecendo os grandes permaneceremos pequenos?

  2. Da Impessoalidade

    Boa noite, caro Dalmoro. Acredito que a prática da uniformização de funcionários tenha sua origem teórica na Teoria da Burocracia de Weber.

    Como em tantas dessas teorias administrativas, a questão da eficiência das organizações era central. Um dos princípios nessa teoria era o da impessoalidade: as prerrogativas do funcionário advém de seu cargo, função e posição na hierarquia da organização, não emanando de sua própria pessoa (como em estruturas centradas no líder, por exemplo).

    Lembrando: é a questão da eficiência central para essa teoria, de modo que tal princípio, entre outros, tem como razão de ser a melhor administração e uso dos recursos da organização. Sumamente interessante é sua observação quanto ao fato de uniformes serem desnecessários: se considerarmos que simbolizam tal impessoalidade, ao mesmo tempo em que podem denotar o cargo, função e posição de seu portador (conforme a teoria preconiza), então considerá-los desnecessários seria afirmar… que a eficiêncie e, em última instância, o bom funcionamento da organização em questão são dispensáveis!

    Imagino que nobres usuários de algum caro serviço em portentoso estabelecimento de modo algum tolerariam funcionários tão a vontade. Talvez por preconceito e vaidade, sem saber, estariam defendendo o melhor para si.

    Corremos o risco de nos beneficiar em nossa ignorãncia e prejudicar-nos em reflexões onde, na melhor das intenções, apenas nos iludimos?

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