O cinema como máquina de viagem no tempo em “La Belle Époque”, por Wilson Ferreira

Com a ajuda de cenários, figurinos e extras, uma empresa oferece “viagens no tempo”: um jantar na corte na época da monarquia ou uma noite bêbada com Hemingway.

O cinema como máquina de viagem no tempo em “La Belle Époque”

por Wilson Ferreira

Quando falamos em viagem no tempo logo lembramos dos cânones da ficção científica: Relatividade e Mecânica Quântica materializadas em máquinas e dispositivos intrincados e misteriosos. Ou viagens místicas e estados alterados de consciência. Mas o cinema nunca imaginou a si próprio como um dispositivo de viagem no tempo: spots de luzes, cenografia, figurinos etc. Por que então não usarmos os recursos cinematográficos para vivermos uma experiência imersiva que nos remeta a qualquer lugar do passado? Esse é o conceito da comédia romântica francesa “La Belle Époque” (2019): com a ajuda de cenários, figurinos e extras, uma empresa oferece “viagens no tempo”: um jantar na corte na época da monarquia ou uma noite bêbada com Hemingway. E um cartunista frustrado com a era digital vai tentar reencontrar a paixão perdida, tanto amorosa como profissional, em uma noite de 1974 – festas, muitos cigarros de maconha, amor livre e movimentos contra culturais. Memórias reais ou hiper-reais?

A viagem no tempo já foi figurada no cinema através de inúmeros dispositivos e técnicas, inspirados tanto pela Ciência (Relatividade, Física Quântica etc.), quanto por estados alterados de consciência induzidos quimicamente (drogas, pílulas etc.) ou misticamente – poderes paranormais, meditação, biofeedback etc.

Uma sucessão de geringonças que vão desde a máquina vitoriana com suas alavancas e maçanetas em A Máquina do Tempo de 1960, passando pelo carro esportivo DeLorean turbinado por plutônio e por “circuitos de tempo” e “capacitor de fluxo” (De Volta Para o Futuro), chegando a gigantesca máquina que traz Bruce Willis do futuro ao presente em Os Doze Macacos.

Mas em tudo isso, o cinema esqueceu de um tipo de viagem no tempo mais simples e ao mesmo tempo imersiva: o próprio cinema, com todo o seu aparato cenográfico-teatral.  Um dispositivo de viagem no tempo que sempre esteve diante do próprio nariz e nunca foi explorado: a própria mise-en-scène cinematográfica – se o cinema nos faz sonhar com mundos imaginários, por que então não poderia nos fazer viajar tanto ao passado quanto ao futuro?

                  Mas não como simples espectador diante de uma tela, tal como na Caverna de Platão. Mas tendo uma experiência imersiva nas luzes, cenários e marcações de cena em um set de filmagem.

                  Essa é a proposta ao mesmo tempo simples, mas complexa na sua realização, da comédia romântica francesa La Belle Époque (2019), de Nicolas Bedo – um curioso mix do paroxismo dos reality televisivos em Show de Truman, de Peter Weir, e as viagens interiores psíquicas representada por um gigantesco estúdio no filme Sinédoque, Nova York, de Charlie Kaufman.

A originalidade da viagem no tempo de La Belle Époque vai além da tradicional “narrativa em abismo” (assistirmos um filme sendo encenado dentro do próprio filme), mas também escapa do lugar-comum desse subgênero, principalmente quando se trata de uma comédia romântica: fugir do clichê da “segunda chance”. Viajar no tempo para o protagonista se redimir dos seus erros e refazer o presente.

Nicolas Bedo propõe uma outra motivação para essa viagem fílmica no tempo: voltar para o passado em uma data específica nos anos 1970, através de uma detalhista reconstituição teatral-cenográfica produzida por uma empresa especializada, para simplesmente fugir de um presente existencialmente opressivo.

Para freudianamente reviver uma cena do passado e redescobrir algo que foi esquecido no tempo. Principalmente por causa da acelerada evolução tecnológica que sujeitou as relações humanas serem mediadas por gadgets tecnológicos. Fazendo-nos esquecer porque estamos ainda juntos com aquela pessoa que amávamos.

O Filme

“Eu acho que esse personagem tem um pouco da minha ambivalência na minha relação com o progresso: sou um usuário entusiasmado de tecnologia, Instagram, mídia social, Twitter … Tudo isso faz parte do meu dia a dia. Ao mesmo tempo, há uma parte de mim que se alimenta de livros, que está furiosa com a disparidade gradual da mídia impressa, horrorizada ao ver as bancas desaparecerem, preocupada com o fato de a geração jovem estar comendo programas de TV como são doces sem saber quem dirige e quem escreve”, afirma o diretor Nicolas Bedo para definir o atormentado protagonista Victor (Daniel Auteuil).

Victor é um velho e deprimido cartunista, ilustrador de livros infantis e desenhista de HQs. Mas que agora vive tempos difíceis, diante do avanço da computação gráficas e dispositivos móveis digitais.

Não entende (e nem quer) entender a mídia digital, ainda apegado ao lápis, papel, nanquim e pincéis. Enquanto isso, sua esposa Marianne (Fanny Ardant) é uma ultra-chique psicanalista em um caminho oposto: com seu cigarro eletrônico, entrega-se a experiências de realidade virtual na cama e se cerca de amigos em conversas sobre startups e plataformas digitais.

O casamento de 40 anos está estagnado, enquanto Victor está cada vez mais deprimido e defensivo em relação ao mundo digital que tirou o seu trabalho – foi demitido do jornal em que era ilustrador.

Para completar, Marianne está tendo um caso com o próprio editor do jornal, François (Denis Podalydès).

Em um ato exasperado, Marianne força dramaticamente Victor sair de casa, levando uma pilha de antigos desenhos da época da juventude do casal nos anos 1970.

Mas Victor tem um possível salvador – um fã do seu trabalho chamado Antoine (Gillaume Canet), que ganha a vida criando experiências teatrais e cinematográficas imersivas, passeios particulares ao estilo Show de Truman para plutocratas que desejam retornar ao passado para reviver ou um período da História (Revolução Francesa, viver num bunker nos momentos finais da vida de Hitler etc.) ou reencenar momentos particulares da própria biografia.

Victor ganha um “voucher de viagem no tempo” para reviver uma data específica no ano de 1974, na “Belle Époque” da sua juventude: quando conheceu Marianne em um café na cidade de Lyon. Em meio a muitas festas, cigarros de maconha, amor livre e movimentos contra culturais.

Antoine é proprietário de um empreendimento chamado “Time Travellers”: com a ajuda de um conjunto enorme de extras, atores coadjuvantes e estúdios de dimensões hollywoodianas, Victor passará os próximos dias vivendo numa imensa cenografia que reconstitui o hotel no qual estava hospedado na época em Lyon, e o café chamado “Belle Époque” onde conheceu Marianne, reconstituindo experiências que foram representadas pelos desenhos de Victor.

Lá conhecerá Margot (Dora Tillier), a atriz no papel de Marianne 1974, que acenderá a paixão que Victor esqueceu na juventude, despertando um subsequente ciúme no diretor Antoine que dos bastidores dirige todos os detalhes – luzes, marcações de cena, diálogos e até trilha musical, no melhor estilo do diretor Christophe na cidade cenográfica do reality Show de Truman.

Ao encontrar com a memória da sua esposa, a narrativa cria um curioso entrelaçamento entre memórias, ficção e realidade – o entrelaçamento entre o casal Margot-Antoine e Victor com as suas próprias memórias performadas pela atriz Margot.

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Redação

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