O legado de Manuel da Maia, o Guarda-Mor do Real Arquivo da Torre do Tombo, por João Roque Dias

E se hoje os arquivos da Torre do Tombo estão intactos, muito se deve ao seu Guarda-Mor de então. Vou então contar-vos esta magnífica história.

Manuel da Maia

Enviado por Gilberto Cruvinel

O legado de Manuel da Maia, o Guarda-Mor do Real Arquivo da Torre do Tombo

por João Roque Dias

1 de Novembro de 1755

Hoje, 265 anos depois do Terramoto, não vos vou falar do Terramoto.

É que, aquela data, era Guarda-Mor da Torre do Tombo Manuel da Maia, um distinto arquitecto e engenheiro, que deixou o seu nome em vasta obra, como o Aqueduto das Águas Livres, a elaboração da planta da cidade de Lisboa (levou-lhe cinco anos e rendeu-lhe uma comenda da Ordem de Cristo) e a construção da estátua equestre do rei D. José I. Mas, para além da obra feita, pouco se sabe sobre a sua vida. Nem sequer se conhece o dia em que nasceu (parece que foi baptizado a 5 de Agosto de 1677), o local de nascimento ou os nomes dos pais. E sabemos, é ele que nos diz, que de vinte em vinte anos, andava ele na tropa, escrevia ao Rei para lhe pedir para ser promovido. Juntava a essas cartas uma listinha das coisas que entretanto tinha feito, como, por exemplo, o abastecimento de água às obras do Convento de Mafra e ter sido regente da Aula de Fortificação e Arquitectura Militar, onde teve como aluno o Infante D. José (futuro Rei José I). Coisas poucas, como podeis ver.

Mas o maior legado de Manuel da Maia, e talvez o mais desconhecido de todos, deve-se à sua função como Guarda-Mor do Real Arquivo da Torre do Tombo, para o qual tinha sido nomeado a 12 de Novembro de 1745, já com 68 anos e com o belo salário de 200 000 réis por ano.

E se hoje os arquivos da Torre do Tombo estão intactos, muito se deve ao seu Guarda-Mor de então. Vou então contar-vos esta magnífica história.

A torre albarrã (porque destacada da muralha) do Castelo de São Jorge, em Lisboa, também conhecida por Torre de Ulisses, Torre do Haver (ou seja, o arquivo real), ou Torre do Tombo (por guardar o Livro do Tombo, ou seja, o livro com as demarcações dos bens reais, ou “tombos”, a partir de finais do século XIV). A torre da imagem não é a original, tendo sido reconstruída em 1940. O nome ‘Arquivo Nacional da Torre do Tombo’ foi utilizado pela primeira no reinado de D. João VI (1767-1826).

No dia 1 de Novembro de 1755, com tudo destruído e a arder, enquanto a população fugia apavorada das derrocadas e dos incêndios (Lisboa ficou entregue a cadáveres e ladrões), Manuel da Maia, com 78 anos, esqueceu-se da idade e da sua casa a arder e correu para o Castelo de São Jorge, onde estava o Arquivo Real. A coragem do velho Guarda-Mor serviu de exemplo a funcionários e populares, que, sob o seu comando, acabaram por resgatar todo o recheio, um património acumulado de 1161 a 1696 na torre do castelo.

Em carta datada logo de 6 de Novembro de 1755 (apenas 5 dias depois da tragédia), dirigida a Sebastião José de Carvalho e Mello, o futuro marquês de Pombal, Manuel da Maia referiu o facto de a torre do Castelo de São Jorge, a Torre do Tombo, onde estava o arquivo régio (o Tombo) ter ruído durante o terramoto mas não ter sido atingida pelos incêndios e pediu livre jurisdição e madeira para mandar construir uma barraca de madeira na Praça de Armas do castelo, para nela recolher, provisoriamente, a documentação salva dos escombros.

A madeira para a barraca veio, por ordem do Sebastião, de uns navios dinamarqueses fundeados em Lisboa com um carregamento de tábuas de madeira. E aí ficaram os quase 90 mil documentos originais, reunidos em 526 calhamaços.

Sim, de facto devemos às pedras da torre do Tombo o salvamento da quase totalidade dos documentos do arquivo, quando caíram sobre os acervos, protegendo-os dos incêndios.

E, coisa do diabo, sabeis que o edifício actual da Torre do Tombo, no Campo Grande, foi projectado para, em caso de grave terramoto, os dois corpos onde se encontram os arquivos ruírem sobre as casas-fortes subterrâneas situadas na parte central? É nelas que se encontram os arquivos mais valiosos, como, por exemplo, a bula Manifestis Probatum, de 23 de Maio de 1179, em que o Papa II reconhece o Rei e o Reino de Portugal ou a Carta do Achamento do Brasil de 1 de Maio de 1500, de Pêro Vaz de Caminha.

Hoje, sendo quase impossível contar o número de documentos existentes na Torre do Tombo, os arquivos ocupam cerca de 100 km de prateleiras e o documento mais antigo, com data de 27 de Março de 882, diz respeito à Carta da fundação da Igreja de Lardosa.

Manuel da Maia procedeu depois ao levantamento da documentação, com a preocupação de verificar as faltas e de estabelecer a correcta ordenação dos livros e demais papéis. A falta de condições obrigou o Guarda-Mor a procurar, durante cerca de um ano e meio, um espaço novo, e definitivo, para a instalação do Arquivo Real. À boa moda portuguesa, a solução provisória corria o risco de se tornar definitiva.

Mas Manuel da Maia não desistiu e foi escarafunchando a paciência ao Marquês de Pombal com sucessivas cartas, advertindo para os perigos a que o seu tesouro estava exposto.

A teimosia deu resultado: o Guarda-Mor foi finalmente informado da disponibilidade de umas casas contíguas ao Mosteiro de São Bento da Saúde (hoje, a Assembleia da República), onde os arquivos foram instalados e organizados e aí ficaram até 1990, data em que foi inaugurado o magnífico edifício do actual Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

Depois, recuperado o Real Arquivo, o engenheiro lança-se à obra que o imortalizou. Foi nomeado engenheiro-mor do Reino e encarregado pelo Marquês de Pombal, de coordenar a reconstrução da Baixa pombalina. Para esta missão, escolheu dois oficiais engenheiros da sua confiança – Eugénio dos Santos e Carlos Mardel.

A reconstrução da Baixa foi o maior legado de Manuel da Maia, mas o seu orgulho foram os arquivos reais e foi aos livros e papéis que regressou assim que pôde. Aos 88 anos, doente e cansado, pediu para deixar a Torre do Tombo e, cinco dias depois, a 17 de Setembro de 1768, morreu. Foi substituído como Guarda-Mor do arquivo, mas o cargo de engenheiro-mor do reino não voltou a ser ocupado.

Está sepultado na Casa do Capítulo do Convento de São Pedro de Alcântara, em Lisboa (Bairro Alto).

Ao Sr. Manuel da Maia, nesta data que comemora uma tragédia nacional, um compatriota profundamente agradecido.

*

João Roque Dias, Tradutor, Lisboa, Portugal.

Redação

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