Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
[email protected]

O mundo que nos expulsa no filme “Lugares Comuns”

O filósofo alemão Hegel dizia que “a coruja de Minerva somente levanta voo ao entardecer” numa alusão à esperança de que a Razão ganhe força em momentos de crise e obscurantismo. E se a Razão falhar? Então, seremos expulsos desse mundo. Esse é o tema filosófico dentro do cenário da crise econômica no filme argentino “Lugares Comuns” (Lugares Comunes, 2002). Um professor de Literatura é compulsoriamente aposentado em um reflexo da crise econômica do país e vê seus valores iluministas e humanistas desmoronarem, sentindo-se um estrangeiro em um mundo cujo lógica são trabalha com soma, mas com subtração.

“Eu sei que existe a desordem, a decepção e a desarmonia. Existe um país nos destruindo, um mundo que nos expulsa, um assassino impreciso que nos mata dia após dia, sem que percebamos. Não tenho uma resposta. Escrevo do caos, da mais completa escuridão”. Essas são as primeiras frases em off do protagonista enquanto escreve apontamentos ou pequenas crônicas para o seu diário. Fernando (Frederico Luppi) é um professor de Literatura em uma universidade em Buenos Aires sob a catastrófica crise econômica argentina do início dos anos 2000 pós-política neoliberais do presidente Carlos Menen.  

Como podemos perceber nessa fala inicial, o filme “Lugares Comuns” fará um paralelo entre a crise em uma dimensão material (a econômica) é a outra crise em um plano metafísico ou filosófico (as velhas questões da Filosofia que, de tão repetidas, tornaram-se “lugares comuns” – caos e ordem, necessidade e liberdade, livre arbítrio e destino).

Fernando é casado com Lili (Mercedes Sampietro) uma assistente social que acompanha de perto as consequências da crise no país. Apegado ao pensamento crítico, ao Iluminismo e Humanismo tenta exercer a crítica literária e, ao mesmo tempo, ensina seus alunos a pensarem e manterem-se longe dos dogmas políticos e religiosos. Tenta transformar a Razão em bússola em um momento de crise e caos social. A frase de Hegel de que “a coruja de Minerva levanta voo somente no entardecer” (a Razão torna-se mais forte em momentos de obscurantismo) seria a convicção salvadora de Fernando.

Mas tudo se desmorona ao receber o último golpe de um país que se esfacela: vê-se obrigado a se aposentar pelo novo reitor da instituição onde trabalha. Os fatores econômicos não só o forçam a se aposentar como ainda lhe tira a expectativa de uma remuneração razoável para a aposentadoria.

Isso significará o fim da sua vida social, a entrada para a velhice e a consciência da derrota dos ideais illuministas da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”.

Todo o seu esforço no passado na luta contra a ditadura militar por uma sociedade mais justa torna-se inútil, principalmente após visitar o seu filho na Espanha empregado numa grande empresa na área de tecnologia e muito bem remunerado. Fernando não o perdoa por ter abandonado a Argentina democrática e por ter escolhido uma carreira bem remunerada em detrimento das verdadeiras conquistas.

Lentamente, Fernando vai abandonando a vida social e intelectual para ficar, catatônico, diante da TV bebendo uísque e fumando às escondidas seus maços de cigarro – Lili o proíbe, pois sua saúde já encontra-se debilitada. Na TV ele descobre uma tentativa de saída, pelo menos financeira: plantar lavanda para destilar a essência e exportar para produtores europeus de perfumes.

Lili e Fernando abandonam um cenário de degradação urbana em Buenos Aires para se estabelecerem (autoexílio?) em uma chácara numa longínqua província fria no sul da Argentina em uma paisagem de ambígua desolação: o vazio e o vento frio como representasse o inverno de uma vida e, ao mesmo tempo, o vazio como espaço a ser preenchido, de potencialidades e esperanças. Não é à toa que Fernando denominará a chácara como “1789” em uma placa em branco, vermelho e azul numa clara alusão à Revolução Francesa e os ideais iluministas em que sempre acreditou.

A crise metafísica: o Estrangeiro

O ponto central do filme são exatamente os “lugares comuns” do título, as tradicionais questões da Filosofia que, de tão antigas, tornaram-se comuns, tão desvalorizadas que ninguém mais vê pertinência nelas. 

Fernando vê a derrota da Razão em um mundo “que nos expulsa”, dominado por um “assassino impreciso”. Temos no filme o clássico personagem do “Estrangeiro”. Como vimos em postagem anterior (veja links abaixo), a literatura e cinematografia contemporânea poderiam ser sintetizadas a partir de três protagonistas da pós-modernidade, três formas da constituição da subjetividade contemporânea: o Detetive, o Viajante e o Estrangeiro. Em suas narrativas esses protagonistas aparecem em geral como prisioneiros em universos hostis, estrangeiros dentro do próprio país, uma estranha sensação de deslocamento, de não querer fazer parte de um cosmos decadente e corrompido.

O reitor carreirista e tecnocrata que aposenta compulsoriamente Fernando e o filho que foge para a Espanha para um bom posicionamento financeiro em uma multinacional são flagrantes de um mundo que nos corrompe e que nos mata retirando o melhor de nós: a luz do conhecimento. O Mal não está nas pessoas. Está no próprio mundo cuja lógica não opera por soma, mas por subtração.

“Lugares Comuns” mostra de forma seca e dura como as pessoas optam pelo esquecimento para mimeticamente se adaptarem ao caos para tentar sobreviverem. Esquecem as principais questões da existência para tornarem-se mais leves e assertivas, não sentirem a dor moral dos gestos e decisões. Mas o mal- estar persiste e estão presentes tanto no reitor carreirista quanto no filho bem sucedido na Espanha que não resiste à culpa diante da crítica cortante do pai diante do argumento do filho que pensava no “futuro”: “o futuro é uma ilusão inventada pelo sistema para que as pessoas se acovardem”.

>>>>>>>>> Leia mais>>>>

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador