Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Palestra de executivo revela a secreta religião americana

O que há por trás da performance de uma palestra de um executivo norte-americano? Broadway, Hollywood, teatro vaudeville e todo um mix cultural único de um país que conseguiu fundir “business”, “show” e “entertainment”. Assistir ao discurso desses protagonistas corporativos é testemunhar o ineditismo de um país que conseguiu fundir a fé tecnológica, o espírito pioneiro dos puritanos e o triunfo do liberalismo comercial. O pesquisador canadense Arthur Kroker chamava isso de “capitalismo pentecostal”: a calculada canastrice da palestra de um executivo inspirada no pantheon dos simulacros da cultura pop, a crença no pragmatismo tecnológico como moralmente bom e a fé em um destino manifesto de levar a religião americana para todo o mundo.

Toda vez que temos a oportunidade de assistir a uma palestra de um executivo, CEO, ou qualquer dirigente político ou corporativo norte-americano, é a chance de testemunharmos in natura uma amostra daquilo que o pesquisador canadense Arthur Kroker chamava de “capitalismo pentecostal”. Para ele, o que há de tão sedutor na cultura dos EUA é a maneira como ela funde a fé cega na tecnologia, o missionário senso de libertação originário do espírito dos pioneiros puritanos e o triunfo da liberdade comercial e do direito à propriedade privada.

Pois tive a oportunidade de assistir na Universidade Anhembi Morumbi à palestra de Eric-Jan Schmidt, responsável pela estratégia de comunicações e marketing corporativo e digital da Hitachi Data Systems, subsidiária da Hitachi Ltd e parte da Hitachi Sistemas de Informação e Telecomunicações.  O tema era Marketing Digital, Comunicação B2B, Big Data/Dark Data e o impacto dessas temáticas no profissional de Marketing e Comunicação.  

Altos dirigentes em ação, principalmente quando visitam outros países, prezam pelo esmero em demonstrar o melhor dos seus negócios. Porém, o mais interessante não é o que eles falam (o enunciado), mas a sua enunciação, a chamada comunicação não verbal. É marcante nesses profissionais de alto nível das corporações norte-americanas o domínio do espaço em uma ampla sala em anfiteatro, a exata marcação de cena, o timing e o ritmo do discurso (suas pausas, ironias e momentos de humor), respostas sintéticas, gestual meticulosamente estudado e um certo senso de “esportividade” (relaxamento mesclado com performance) e jogo.

Canastrice norte-americana versus latino-americana

Hollywood, Broadway e toda a
cultura pop por trás de
um meticuloso domínio
de cena

Fico pensando o quanto de teatro vaudeville, Broadway, indústria hollywoodiana e de entretenimento e cultura pop estão por trás nesse meticuloso domínio de cena.  Um século XX de cultura visual e de entretenimento está por trás da naturalidade de Eric-Jan Schmidt, uma cultura que acabou fundindo showentertainment e business. Uma atuação overacting certamente, canastrona pela sua naturalidade estudada e ensaiada a partir de uma mitologia pop gerada por Hollywood e repercutida por todas as técnicas de oratória e de falar em público. Mas uma canastrice bem diferente da nossa, latino-americana.

Isso é o que difere um David Letterman de um Jô Soares. Enquanto em Letterman, ícone do gênero talk show televisivo, o timing e o senso do humor seco são ajudados pela natureza sintética da língua inglesa, no Programa do Jô o timing é mais lento, frases longas, convidados dando respostas arrastadas nas entrevistas e o apresentador tendo que levar o entrevistado nas costas.

Sem uma indústria teatral, cinematográfica e de entretenimento genuína, nossa canastrice se torna mais melodramática, trágica, exemplificada pelos tipos de galãs decadentes que a encarnam: desde corretores de imóveis, vendedores de carros usados, até palestrantes que circulam pelo meio corporativo com seus ternos mal cortados e gestual estereotipado, como fossem cópias mal feitas dos clichês hollywoodianos.

Ao contrário, Eric-Jan bebe na fonte original do pantheon do simulacro norte-americano – Elvis, James Dean, Madonna, Michael Jackson – porque os EUA não precisam de uma mitologia externa, como nós. Cultura única onde a transitividade entre ficção e realidade é brutal: onde atores de Hollywood se transformam em presidentes e governadores e um filme como Argo ganhou o Oscar por narrar uma estratégia da espionagem norte-americana na crise do Irã em que simulava ser uma produção cinematográfica.

A canastrice norte-americana é mais ambígua e, por isso, mais eficaz: é estudada e ao mesmo tempo meticulosamente “espontânea” pelo seu fair play e “esportividade”; gestual espontâneo e relaxado enquanto a fala é em timing rápido e voice roll (ritmo vocal que sugere a existência de uma batida rítmica imaginária criando um efeito hipnótico, abrindo o receptor à sugestão). Mas, principalmente, o domínio de cena, do espaço e do tempo cria a chamada “bomba do amor”: criação de atmosfera de intensa positividade, muito utilizado por líderes religiosos para criar estados de excitação e boa vontade.

Essa é a essência do capitalismo pentecostal de que fala Arthur Kroker: uma secreta conexão une CEOs de corporações a pastores pentecostais televisivos norte-americanos como Billy Graham e Jimmy Swaggart.

A religião americana

Eric-Jan veio nos falar de um novo mundo onde o marketing estimulará a produção de novos produtos e serviços a partir da forma inteligente de armazenar dados sobre tudo e todos através da chamada internet das coisas (sistema global de registros de bens em um sistema wireless e nanotecnologia): o desafio do armazenamento e análise estratégica de dados para encontrar pistas do comportamento e confiança do consumidor, geolocalização e padrões de tráfego que podem auxiliar no planejamento do negócio.

Um cenário que tornam as denúncias de Edward Snowden sobre espionagem eletrônica da NSA (Agência de Segurança Nacional dos EUA) parecerem fichinha. Mas então, porque essa atmosfera positiva e otimista em relação a um novo mundo neoplatônico onde todas as nossos comportamentos serão registrados em dados armazenados para análises estratégicas comerciais? Por que os artífices desse novo mundo não serão mais políticos ou governos, mas puros e genuínos pioneiros da iniciativa privada e profetas do livre comércio.

Eric-Jan abriu para nós o núcleo da religião americana, aquilo que faz pulsar o seu “destino manifesto”: a fé na livre iniciativa, no pragmatismo comercial como moralmente bom porque voltado à eficiência e eficácia do lucro. Isso é o que faz distinguir o capitalismo americano das origens espirituais do capitalismo europeu descrito por Max Weber no livro clássico A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Nos EUA o capitalismo não é mais protestante, ele é pentecostal.

Se na Europa a ética protestante impulsionou um capitalismo marcado por uma espécie de ascetismo mundano (Deus deve reconhecer a sua fé pelas obras e realizações que você acumulou na Terra – e o capital seria uma delas), na América a relação com o Divino foi buscada de forma mais direta e dinâmica por meio de um pacto com a tecnologia: a fé na possibilidade radical de transformar a sociedade e o indivíduo por meio da tecnologia como um meio para o desenvolvimento da liberdade e a realização dos nossos potenciais, o que nos aproximaria de Deus.

Um senso de individualismo pragmático onde a plena liberdade comercial realizará a liberdade de escolha e consumo individuais. Um senso de praticidade (tudo rápido, prático, princípio do menor esforço, tudo ao alcance de um clique em um mundo de dados disponíveis com o menor esforço e custo) que é moralmente bom em si mesmo, sem maiores questionamentos políticos como controle social – quem é o dono do hardware?

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

13 Comentários

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  1. É o capitalismo carismático – ou o direitismo santificado

    Empresas de marketing de rede (pirâmides) que surgiram quase todas lá, também se utilizam de estratégias “religiosas” e dominadoras (na essência uma pirâmide é monopolista). E assim eles criaram um “gado” doente através de seus fasfudes e amedrontados, através de roliúde.

  2. Não há grandes diferenças

    Não há grandes diferenças entre o capitalista europeu, ao longo de todos os séculos dezenove e vinte e até do século dezoito. Apenas, nos Estados Unidos, estes capitalistas puderam desde o início do país construir um mundo ideal para eles mesmos, sem todas as pressões civilizatórias que envolviam a Europa. Quanto aos latino americanos, os patrões se engajam no universo global e não são mais propriedade de seus países, são cidadãos da órbita internacional do dinheiro. E o exército de seus servidores, como economistas e palestrantes, apenas diferem dos euroamericanos por serem mais caipiras, se não estariam lá e não aqui, no centro e não na periferia. Quanto ao Jô, é lamentável porque é uma cópia de algo americano. Até a caneca de chá do Leterman, até o seu maestro careca, o Jô copiou. Teria, no entanto, talento para criar um programa brasileiro de entrevistas fantástico e original, que por tanto sucesso que faria até poderia ser copiado inclusive nos Estados Unidos. Mas a emissora, copista e provinciana por natureza, não lhe deu esta oportunidade.

  3. Deixei la, W:
    “Isso é o que

    Deixei la, W:

    “Isso é o que difere um David Letterman de um Jô Soares. Enquanto em Letterman, ícone do gênero talk show televisivo, o timing e o senso do humor seco são ajudados pela natureza sintética da língua inglesa, no Programa do Jô o timing é mais lento, frases longas, convidados dando respostas arrastadas nas entrevistas e o apresentador tendo que levar o entrevistado nas costas”:

    Eu costumava assistir Letterman.  Uma vez eu o vi fazendo piadas pesadissimas e *sangrentas* a respeito de Pataki, segunda, terca, quarta, quinta, e sexta feira.  Achei engracadissimo.

    Wilson, advinhe quem apareceu de surpresa e foi aplaudido de pe naquela sexta feira depois das piadas todas?  Vamos la, advinhe.

    Foi o proprio Pataki.

    O problema da canastrice brasileira NAO eh a linguagem “menos” fluente.  Eh o complexo de inferioridade.  Tanto eh que Aecio nao pode ser perguntado diretamente por nenhum jornalista do Brasil a respeito dos rumores de cocaina e da “internacao” ficticia que teria ocorrida alguns anos atraz.  O mesmo complexo de infinita inferioridade pode ser visto no youtube em uma entrevista de FHC pra brancos americanos, entrevista que NUNCA teria acontecido no Brasil porque brasileiros sao inferiores pra ele.  E ainda temos varias perguntas que nao podem ser perguntadas por jornalistas brasileiros a um JSerra que seja.  Eh frustrante, mas demonstra o grau de complexo de inferioridade do politico brasileiro.

    Ja esqueci o assunto, qual era mesmo?

    Superbo item!  Um abracao de Ivan de Union.

  4. Eu acho que esse estilo de

    Eu acho que esse estilo de palestra só funciona diante de um auditório reverente, capaz de rir da piada mais sem graça para não causar desconforto pro “chefe”.

    Por outro lado, já há quem discuta se essa ética conforme foi descrita por Weber – a ética da poupança, acumulação e o cálculo – ainda viceja nos EEUU do mesmo modo.

  5. panorama otimista

    Bela análise do Wilson que na minha opinião aponta para um horizonte cor de rosa. Afinal os pesadelos orwellianos de uma sociedade totalitária não se concretizaram, e tão pouco os malthusianos de populações se degladiando por comida.

    E se o preço a pagar pelas intrusões da NSA são estratégias comerciais norteadas pelo “fair-play” ,-  tudo isto com pragmatismo tecnológico religioso , tô nessa !. Melhor do que o Edir Macedo batendo o fantástico nos domingos.     

    1. Panoramas diversos

      Marcelo,

      Não entebndi o seu  título,  panorama otimista.

      Tio Sam funciona em espírito totalitário há anos, sempre invadindo a partir de pretexto tirado da cartola, destrruindo e saqueando o que interessa, e na eurozona as pessoas procuram no lixo algo para comer.

      Tio Sam agora faz parceria com o exército da Al Qaeda (ela mesma) na Síria, pois americano não gosta de sujar as maõs com sangue – o alvo são os cristãos, um morticínio daqueles com um formidável requinte de crueldade, 

       

      1. pois é , Alfredo

        Mesmo diante destes descalabros que mencionastes o Wilson fala em “fair play” americano, achei uma perspectiva otimista.

        E se compararmos com cenários pintados por Orwell ou Malthus até que não estamos tão ruins assim, acho que vivemos num estado de equilibrio estático que será rompido apenas por catastrofes naturais. 

  6. Prezado Sr. Ferreira, boa

    Prezado Sr. Ferreira, boa noite!

     

    “A canastrice norte-americana é mais ambígua e, por isso, mais eficaz: é estudada e ao mesmo tempo meticulosamente “espontânea” pelo seu fair play e “esportividade”; gestual espontâneo e relaxado enquanto a fala é em timing rápido e voice roll (ritmo vocal que sugere a existência de uma batida rítmica imaginária criando um efeito hipnótico, abrindo o receptor à sugestão). Mas, principalmente, o domínio de cena, do espaço e do tempo cria a chamada “bomba do amor”: criação de atmosfera de intensa positividade, muito utilizado por líderes religiosos para criar estados de excitação e boa vontade.”

    A prática acima é uma das mais desonesta que conheço, inclusive é muito usada por  advogados inescrupulosos em tribunais do júri.

     

    Tirando o preconceito de classe, o texto é maravilhoso.

  7. Ah tá, está no sangue deles.

    Ah tá, está no sangue deles. Agora entendo mais porque nesses seriados de comédia eles “enfiam” uma risada ao fundo: se você não riu é porque não entendeu – ou porque o tipo de piada não é para você (a grande maioria deles não é para mim).

  8. E o dólar?

    Penso que o Capitalismo Americano, pentecostal ou não, leva uma vantagem porque eles imprimem as verdinhas.

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