Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Papai-Noel Vinga-se do Cristianismo em “Uma Noite de Fúria”

 

Um filme “trash” como “Uma Noite de Fúria” (Santa’s Slay, 2005) trás muito mais verdades do que toda a filmografia que pretende trazer fé e esperança por meio de uma figura tão controvertida como Papai-Noel. A recorrência de filmes que apresentam uma visão “pagã” ou “satânica” do mito natalino confirma as origens histórico-políticas de Papai-Noel: Santa Claus e Satã são os dois lados de uma mesma moeda criada pela Igreja para que o Cristianismo ganhasse hegemonia sobre culturas dominadas por rituais de fertilidade que relembravam os ciclos da natureza, morte e renascimento.


Em postagem anterior, ao analisarmos o filme finlandês “Rare Exports: A Christmas Tale”, cujo diretor foi buscar no folclore finlandês as origens pagãs do Papai-Noel (selvagem, sem nenhuma boa vontade e perseguidor de crianças), discutíamos a existência de um imaginário subterrâneo no mito natalino, muito recorrente no cinema. Um imaginário bem diferente e menos altruísta do que a tradição cristã que credita as origens de Papai-Noel a São Nicolau (século IV DC).

A lista de filmes que apresenta essa visão “alternativa” do Papai-Noel (ou “Santa Claus”) é imensa. Só para listar alguns: Bad Santa (2003), Black Christmas (1974), Christmas Evil (1980), Silent Night, Deadly Night (1984), Jack Frost (1996), Don´t Open Till Christmas (1984) etc. Definitivamente, não são filmes recomendáveis para serem assistidos na noite de Natal, mas dão o que pensar: porque essa recorrência dessa figura maligna do Papai-Noel no cinema? Apenas exemplos da estética trash? Filmes que simplesmente querem romper com a monotonia da figura do bom velhinho? Ou simplesmente diversão sadomasoquista?

Se acreditarmos que os filmes são muito mais do que mero entretenimento, mas documentos primários para estudarmos a sensibilidade, o imaginário ou os sintomas culturais de uma época, então temos que levar a sério a recorrência de certos temas, simbologias ou iconografias nas narrativas fílmicas. Evitar o julgamento simplista que pretende descartar filmes sob rótulos como “comercial”, “trash” ou “de entretenimento”. Em outras palavras, recorrências no cinema sempre são sintomas de sérios conteúdos antropológicos ou culturais da espécie (mitos, arquétipos, imaginários, mitologias etc.).

O filme “Uma Noite de Fúria” (Santa’s Slay, 2005) é mais um exemplo de filme que explora esse imaginário subterrâneo do Papai-Noel. Mesmo para quem não gosta do gênero, o filme vale pela sequência inicial: uma família vai iniciar a ceia de Natal (com participações especiais de James Caan, Fran Drescher, Chris Kattan etc.) entre diálogos ríspidos e cínicos com acusações veladas e ironias sobre infidelidade, preconceitos e um peru que virou “sola de sapato” de tão duro. De repente, eis que desce pela chaminé, destruindo todos os tijolos da lareira, um Papai-Noel com a aparência de um viking enlouquecido que inicia uma bizarra série de assassinatos, massacrando toda a problemática família.

Na verdade o Papai-Noel é filho de Satanás que, após perder uma partida de “curling” (esporte praticado em pista de gelo cujo objetivo é lançar pedras de granito o mais próximo possível de um alvo) para um dos anjos de Deus, foi condenado a cumprir os termos de uma aposta: por mil anos foi obrigado a espalhar a alegria, presentes e a boa vontade na Terra. E naquela noite expira o prazo da aposta, tornando o Natal na cidade de Inferno (sim, Inferno!) uma explosão de fúria de uma entidade libertada que espalha caos e morte com muitos Ho! Ho! Ho! a cada chacina.


Os dois lados da mesma moeda: a origem do Papai-Noel


Aparentemente estamos diante de dois imaginários conflitantes de Papai-Noel: de um lado a visão oficial e cristã do bom velhinho e, do outro, a versão sobre um personagem pagão, cruel e demoníaco. Mas, se tivermos o cuidado de observarmos a história da hegemonia do Cristianismo sobre as culturas ditas “pagãs” na Europa veremos este conflito não existe: na verdade são as duas faces de uma mesma moeda da ideologia religiosa que a Igreja impôs ao demonizar os velhos deuses de eventos pagãos na Idade Média.

Phyllis Siefker em seu livro “Santa Claus, Last of the Wild Men: The Origins and Evolution of Saint Nicholas, spanning 50,000 years” afirma que Papai-Noel  é descendente de uma longa linha soturnos, sujos e peludos deuses remanescentes da era pré-cristã. Através de milênios sua figura surge em muitos países adaptando-se às regras e mudanças sociais. Através da Europa, esse deus selvagem fez parte de festividades e rituais de fertilidade, relembrando os ciclos da natureza, morte e renascimento.

Um exemplo é a figura de “Pencenickel” (Pelznickel no original alemão) que usando máscara e roupas escuras trazia correntes para prender as crianças mal comportadas. Outro exemplo vem da medieval Grã Bretanha onde “Father Christmas” (ou “Lord of Misrule) comandava festividades de inverno com bebedeiras e comilanças.

Com a expansão da Igreja Católica e o seu objetivo de “salvar” a Europa do paganismo, essas divindades natalinas foram rotuladas como deuses do ódio e da violência. A partir do século VII o Papa Gregório as transformou em criaturas com a forma física do Demônio: cascos, chifres, rabos, peludos como animais selvagens e provenientes do Polo Norte, origem dos ventos frios que trariam o Demônio. Foi uma estratégia radical para combater e erradicar as festividades “pagãs” que impediam a hegemonia do Cristianismo.

“O fato é que Papai-Noel (Santa) e Satã são alter egos, irmãos; têm a mesma origem. Em nossa era, é difícil ver a relação entre os dois. Papai-Noel é o nosso símbolo do Natal – a representação da generosidade, boa vontade e bênçãos. E Satã: definitivamente a antítese de todas as coisas brilhantes e bonitas. Ele é lascívia, tentação e destruição”. (SIEFKER, Phyllis, Santa Claus: Last the Wild Men. Jefferson: McFarland&Co. Inc. Publishers, 2006, p. 6.)

Antes do Papa Gregório, quando raramente se dava uma aparência física ao Demônio, o Mal era representado como um anjo decaído. Mas em geral, o Mal era considerado como um conceito muito mais psicológico, até a Igreja se confrontar com as milenares festividades de sensualidade, bebida e comilança. O Mal agora estava personificado nas figuras híbridas de homem e animal (lobisomens e a estórias de padres que se transformavam em lobos são exemplos), com órgãos sexuais imensos, roupas escuras e poderes de controlar o clima.

Mas de nada adiantou: as festividades resistiram às mudanças porque estavam fortemente enraizadas na terra e no trabalho agrícola do dia-a-dia das comunidades.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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