Poderá o Coringa ser interpretado como um dos sinais de nossa transição a uma nova época histórica?

Se quisermos entender o curso da história, precisamos estar atentos a certos acontecimentos que são signos históricos e que o são porque memoráveis, demonstrativos e prognósticos

Por João Carlos Brum Torres

Há uma passagem em “O conflito das faculdades” na qual Kant diz que se quisermos entender o curso da história, precisamos estar atentos a certos acontecimentos que são signos históricos e que o são porque memoráveis, demonstrativos e prognósticos. Dessa lição, o que aqui importa é o alerta que ela contém sobre a importância de prestar atenção ao que nos acontece, pois tudo indica que nestes complexos e aflitos dias nos encontramos no limiar de uma nova época, no sentido profundo que historiadores e filósofos atribuem ao termo.

Por certo, não parece nada evidente que um filme inspirado em histórias em quadrinhos, um desses tantos blockbusters hollywoodianos cuja popularidade ocupa noventa por cento das salas de cinema das cidades em que são exibidos, possa ser tomado como um sinal histórico, ainda menos dotado dessa força indicativa e prognóstica de que falava Kant. Aliás os comentários mais usuais sobre O Coringa, ou ressaltam seu potencial de estímulo a atitudes extremadamente destrutivas como são as repetidas matanças de inocentes nos Estados Unidos, ou chamam atenção para dimensão psicológica, para a loucura que está na raiz da transformação de Arthur Fleck no Coringa. Alguma surpresa causa, contudo, o comentário do principal crítico de cinema do The Guardian, para o qual “de algum modo o filme consegue ser desesperadamente sério e superficial”. Que o filme seja sério e que haja nele um tom desesperado é indiscutível, mas para dizê-lo superficial, requer-se algum tipo de disfunção visual, um escotoma que torna invisíveis as dimensões psicológicas e sociais da vida contemporânea. Não há espaço aqui para levar adiante essa discussão, pois, para ficar em linha com o que sugeri acima, o mais importante é aperceber-se de que o filme é um desses acontecimentos indicativos e prognósticos de que fala Kant e que o é na medida em que é sintoma, sintoma do que há de doentio nesta passagem de época, neste momento em que se superpõem os cruéis problemas econômicos, sociais e psicológicos do período que está a findar e as incertezas que tornam tremidas e obscuras as imagens do tempo que se avizinha.

Para entender o que estou a sugerir, o primeiro ponto a destacar é a data: a data que importa não é 1982, o tempo da intriga ficcional em que se desdobra e perde a transformação da vida de Arthur Fleck no Coringa, mas sim a data do lançamento do filme, este 2019 anunciador da próxima entrada na segunda década do século XXI. Outro aspecto a não perder de vista é que, não obstante ser The Jocker uma produção independente, a distribuição é da Warner, um dos cinco mega conglomerados que controlam a indústria cinematográfica mundial, seus executivos não tendo hesitado em lançar no esquema de distribuição massiva e internacionalizada de sua filmografia um dos mais agressivos filmes de crítica social e civilizatória da história do cinema americano.

No entanto, não é exatamente isso o que faz de O Coringa um sinal histórico, porque afinal críticas de caráter social e de seus rebatimentos nas vidas individuais, inclusive sobre os casos limites da passagem à loucura, se não são os mais comuns na produção fílmica comercial, tampouco são como raios em céu azul. Não, o que faz do filme um sinal histórico é o contexto, o fato de que ele está em fase com outros grandes acontecimentos e processos supervenientes em várias outras paragens da paisagem social e que, considerados conjuntamente, indicam que estamos em transição para uma nova época histórica, de modo que é sobre isso que agora importa dizer uma palavra.

Não é fácil fazê-lo, muito menos concisamente, mas, para começar, cabe desde logo assinalar que há dois estratos no processo de mudança estrutural que está em curso na sociedade contemporânea.

O primeiro é o do ocaso da Globalização, entendido o termo não simplesmente como sinônimo do incremento dos fluxos de comércio internacional, tampouco como o processo de transferência massiva da indústria manufatureira mundial para países cujo custo do trabalho é muito inferior ao verificado nos países desenvolvidos, mas tomando-o antes como a prevalência automática dos mecanismos de mercado na conformação da dinâmica econômica, social e política do mundo, cuja expressão político ideológica foi a hegemonia quase universal do neoliberalismo ‒ essa espécie de doutrina que quase por toda parte veio a ser entronizada como o padrão de racionalidade a ser seguido em uma vida social sensata e responsável.

Pois bem, com relação a essa transição, Donald Trump é o nome do divisor de águas. Foi ele quem olhou com olhos de ver as consequências econômicas e geopolíticas da globalização. Foi ele quem praticamente atinou não só que o desdobramento desse processo produziu o monstruoso crescimento econômico chinês, que está a por em risco a liderança e o controle inconteste dos Estados Unidos na cena mundial, mas também que os efeitos destrutivos da economia globalizada na sociedade americana ‒ notadamente a decadência de setores e de regiões industriais tradicionais, a desqualificação geral dos empregos, o aumento da pobreza mesmo em regiões ricas, como se vê em São Francisco, para referir somente alguns dos impactos mais visíveis ‒ haviam criado não só uma insatisfação difusa com a sociedade contemporânea, mas vastos bolsões de ressentimento, que estavam como que a espera de uma nova orientação política. Foi a essa espera que o America First deu uma resposta potente, não só na agressiva disputa comercial com a China, mas também no rompimento das negociações visando o estreitamento e formalização de acordos de cooperação econômica multilateral como os da chamada Trans Pacific Partnership (TPP), ou as tratativas para criação de um acordo similar entre os Estados Unidos e a União Europeia ‒ O Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, sem falar nas rusgas com o México, com o Canadá, com a União Européia.
Fossem esses exemplos de alterações no posicionamento dos Estados Unidos com relação à economia e à política mundial fenômenos únicos e já haveria motivo suficiente para meditar sobre a profundidade histórica das mudanças acarretadas por elas. No entanto, o neonacionalismo de Trump está longe de ser o único dos sinais que levam a pensar que a globalização e a incontrastada hegemonia neoliberal aproximam-se de seu fim. Outro sinal vem também dali, do coração dos sistema capitalista mundial, pois na disputa pela indicação do candidato do Partido Democrata para a próxima eleição presidencial, de maneira quase inimaginável há dez anos atrás, dois dos três pré-candidatos mais fortes são o senador Bernie Sanders, declaradamente socialista, e a senadora Elizabeth Warren defensora do desmembramento do Google, do Facebook, da criação de um sistema público de saúde, do fim da produção de petróleo baseada no xisto, do aumento da tributação, etc., o que faz dela a figura mais radicalizada dentre os reformistas da história americana.
Mas isso ainda não é tudo, pois é preciso incluir no conjunto de sinais que dão testemunho do que denominei de primeiro estrato das alterações estruturais sobrevindas na sociedade contemporânea não só o Brexit, mas o grande crescimento das forças de direita em quase toda a Europa, movimentos esses que mostram que as insatisfações, o ressentimento e as revoltas atuais se enraízam de variadas maneiras no que há de frustrante e insatisfatório na vida que é dado viver a um imenso contingente do povo comum nas sociedades atuais.
A face ambivalente dessas insatisfações se faz ver também no que sucede na França com os protestos dos gilets jaunes ‒ que se repetem há já quase um ano e no desdobramento dos quais já se contam 12 mortos e 4.439 feridos – assim como nos eventos, quase insurrecionais ocorridos em Hong Kong, no Equador, no Líbano e, agora, sobretudo no Chile, o país modelo de grande sucesso a ser obtido com as políticas neoliberais, e que, imprevistamente, encontra-se em meio a manifestações que já chegaram a reunir um milhão de participantes e no custo humano das quais já se contam, oficialmente, 19 mortos.

Pois bem, é justamente a diversidade da orientação política e da evidente variedade de motivos concretos e imediatos que estão na origem dessas diferentes manifestações de insatisfação que nos remete ao segundo dos estratos de mudanças no mundo contemporâneo aludido acima. É o caráter indeterminado do sentido politico dessas múltiplas e variegadas formas de protesto e revolta que leva a pensar que elas são sinais sintomáticos, expressões visíveis de mudanças que estão em curso nos elementos que mais fundamentalmente estruturam a vida social de nossos dias e que a estão a mudar de um modo que, sob um aspecto, é transparente mas que, em outro – quem sabe em decorrência exatamente dessa transparência e familiaridade – tem seus impactos sísmicos, é bem o caso de se dizer, desapercebidos, desligados dos eventos política e socialmente disruptivos que vimos considerando.

O que estou a sugerir é que as transformações da vida quotidiana trazidas pelo capitalismo digital e seus impressionantes dispositivos, os processos de substituição crescente do trabalho vivo pelo trabalho morto, para usar os termos de Marx, inerentes à robotização crescente e acelerada dos processos de trabalho, não só na indústria mas também nos serviços, assim como a mudança da conformação do que se costumava chamar de pirâmides etárias em decorrência da extensão do cronograma das vidas humanas são todos fatores geradores de incerteza, de angústia e de disposições afetivas ressentidas, indissociáveis da perda da importância social de contingentes populacionais cada vez mais amplos.

É isso que se encontra na base tanto da busca de segurança e dos espaços de vida tradicionais presentes nas variadas formas de retorno do nacionalismo em nossos dias, quanto das revoltas de inspiração mais ou menos de esquerda, pois é a cada dia mais evidente que dar livre curso à logica dos mercados ‒ a profissão de fé do neoliberalismo – não é um modo racional e adequado para tratar das alterações de fundo que estão a reorganizar perturbadoramente a vida social no período de transição em que nos encontramos. A verdade é que não há como deixar de ver que perfila-se no horizonte uma espécie de excesso, de inutilidade e de dispensabilidade das vidas humanas, inelutavelmente acompanhado do incremento abusivo das desigualdades econômicas em favor da nova e reduzida elite que gere, implementa e aproveita da valorização dos novos saberes e das mudanças econômicas e sociais que lhes são associadas.

Este é o contexto que permite ver na perversa estruturação da vida familiar de Arthur Fleck, no desequilíbrio psíquico que o afeta, na pobreza social, econômica e humana de uma vida que não encontra traço de solidariedade, não só as condições para o surgimento malévolo do Coringa, mas uma espécie de metáfora do medo, da desilusão e da ira que se espraiam por contingentes cada vez maiores da população mundial de nossos dias. É nesse sentido que cabe reconhecer no filme mais um, talvez o mais popular e acessível dos sinais históricos que nos anunciam a mudança de época em cuja tumultuada transição nos vemos a meio.

Redação

7 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Não desejo ser mais realista que o rei. E, apesar das dezenas de interpretações e análises feitas por eminentes sociólogos, psicólogos, advogados, médicos, psicanalistas, pedreiros e carpinteiros, também tenho a minha interpretação e parece ser algo diferente das demais, inclusive correndo o risco de ser absolutamente errada: O filme parece ter causado uma fricção no pensamento das pessoas. E Arthur já teve diversos destinos selados, indo para o céu ou para o inferno, conforme seja o desejo do pretendente. Porém, a meu juízo, Arthur até que é um cara pacífico e passivo, diante dos reiterados sofrimentos e humilhações que lhe são impostas “pela vida”, até o momento em que percebendo a perda total do sentido de alguma vida para chamar de digna, resolve reagir e passa a matar quem lhe afronta ou mostra desfaçatez. E a cena dos três “coxinhas” no metrô mostra isso claramente!!! Mas o que de fato importa é responder à pergunta: E o que ele deveria fazer? Que deveria ter feito? Deveria ficar-como a quase totalidade dos seres humanos , ficar com a “boca escancarada e cheia de dentes esperando a morte chegar? Ele apenas reagiu como qualquer um faria se perdesse o medo ou os freios sociais.E diz o Jocker ” Sinto agora que existo! A pergunta é: ele deveria ficar quieto e passivo, ou está certo em reagir como reagiu a toda a merda que lhe impuseram durante a vida? É mais ou menos como aqueles movimentos sociais pacíficos e ordeiros, que só trazem benefício aos opressores, pois estes passam a ideia de que são democratas e bem assim, os vencedores sendo bondosos com os derrotados. O que resolveria realmente qualquer constrangimento?: Portar-se como o povo do Chile ou como o povo brasileiro ora está fazendo? Detalhe, ao meu lado no cinema, um casal comentava: ” Vai aparecer algum maluco por aí querendo imitar o Coringa já já….!!!!! Será? digo eu!!!!

  2. Estou com o crítico do Guardian. Trata-se de filme superficial: dotado de conflito que absolutamente nada tem de novo, tampouco seu desenlace que é o da violência/vingança como solução. Westerns já abordaram tanto isso (cavaleiro solitário, justiça com as próprias mãos, terra sem lei), que caíram em esgotamento, depois de filmes de “ação” até Tarantino reciclaram a fórmula. O sucesso comercial ou a sincronicidade com crises sociais não alteram esse fato nem permitem dizer que possa servir de anuncio de nova era. Filmes como V de vingança também poderiam evocar essa conclusão, mas a repercussão posterior do filme não a corrobora.

  3. Caro João,
    Essa inutilidade do humano para o capital, em função da automação, é uma ideia marxista que tem recebido uma releitura muito fecunda da crítica do valor e sua teoria de crise.
    Em relação ao cimnema comercial, concordo que ele nos diz muito sobre nossa época, nossos anseios e medos. Mas creio que o cinema comercial expressa melhor o espírito da época quando o faz de forma velada, sem que o espectador e nem mesmo os criadores do filme o saibam. É o caso por exemplo dos filmes sobre zumbis e Matrix que, no meu entender são metáforas involuntárias da dominação abstrata (automática) do capital sobre as pessoas.
    Interpretei estes filmes num artigo aqui no GGN: https://jornalggn.com.br/artigos/ficcao-cientifica-e-dominacao-abstrata/

  4. O filme capta e transborda a informação do inconsciente coletivo desta era de acirramento dos interesses, da crise cuja resposta não pode ser mais uma guerra mundial. Por isso é um sucesso. Por isso todo mundo entende. Por isso os do clube do 1% o veem como perigoso. Porque será que não veem o mesmo perigo em filmes com cenas bem mais violentas? É a cartarse, a libertação, a revolução que eles temem.

  5. Excelente texto. Vou refletir e assistir. Vou tentar encontrar essas pertinentes afirmações em seu. Creio ter possibilidades de horas de reflexão pessoal sociológica e filosófica, sem perder esperança, renúncia e ganhar músculos para continuar a lutar pelo bem.

  6. Respeitando a opinião de todos, vi apenas um personagem dos quadrinhos, nada além. A diferença é que esse mesmo personagem, está nos jornaleiros há quanto tempo? A diferença é que Cinema é mais “agradável”, para não dizer mais “fácil” do que a leitura nesse país…

    Adoro cinema, comentário nada tem com minhas “preferências” e muito menos, sobre preferências alheias. Apenas, observo que se o personagem permanecesse atrelado apenas ao âmbito da leitura, jamais teria alguma repercussão, como nunca teve antes dos filmes relacionados aos quadrinhos surgirem, com a tecnologia adequada, capaz de elaborar filmes melhores, visualmente.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador