Resenha: Andrea Camilleri – O Rei de Girgenti


Andrea Camilleri – O Rei de Girgenti
 (Editora Record – 379 páginas)

         Respire fundo e mergulhe de cabeça no primeiro parágrafo. Andrea Camilleri é dono de uma escrita vertiginosa, sem embromações, em que duas ou três páginas são suficientes para muita coisa acontecer.

         É bem provável que sua habilidade para contar histórias tão cheias de ação, com tal encadeamento caudaloso de cenas originais, tenha sido reforçada a partir do trabalho como diretor, dramaturgo e roteirista de televisão. Seu ritmo literário ganhou celeridade graças à herança de ofício adquirida na prática da linguagem audiovisual.

         Nascido em 1925, Camilleri estreou como romancista tardiamente, em 1978. Só foi adquirir notoriedade em 1994, quando publicou “A forma da água”, primeira da série de novelas policiais protagonizadas pelo impagável comissário Salvo Montalbano. Sem a mínima campanha publicitária, contando apenas com o fenômeno do “boca-a-boca”, os pequenos “casos” de Camilleri rapidamente alcançaram enorme sucesso, arrebatando não só o público italiano, como o resto do mundo. Premiadíssimos, chegaram à casa dos 3 milhões de exemplares vendidos.

         A imaginária cidade de Vigàta – que o escritor admite ser uma reprodução de sua terra natal, Porto Empedocle – oferece seus cenários a romances policiais, ou então recua no tempo, para ser palco da História ou de reminiscências autobiográficas.

        Após o final dos anos 90, o autor retoma seu caminho como ficcionista histórico. O Rei de Girgenti (2001) inscreve-se nesta nova fase de sua carreira. Em grande parte fantasia, o enredo inspira-se em fatos verídicos da vida de um líder popular que realmente existiu: Zósimo, um jovem e inteligente camponês que aprendeu a falar aos 3 meses de idade, filho de Filônia e Gisuè, experimentou intensamente a graça, a tragédia e a glória. Cultivado nos livros que lera entre secas e pestes, indignado com a fome e a injustiça, expulsou os governantes de Montelusa (que então passou a se chamar Girgenti, hoje Agriento), proclamou-se e foi aclamado rei de sua cidade em 1718.
        O Renascimento já iluminava o mundo, mas a pequena região da Sicília vivia como se ainda estivesse na Idade Média. Assumida a sua responsabilidade de governante, Zósimo aboliu a nobreza feudal, ridicularizou o alto clero e a Inquisição, distribuiu terras e, sempre tocado por um grave sentimento de culpa, degolou funcionários e autoridades. O povo de Montelusa abraçou as chamadas “leis de Zósimo”, com sua opção por uma ‘desigualdade discreta’, desde que alcançada ‘uma proporção mais prudente entre pobreza e riqueza’. Contudo, a frágil monarquia camponesa durou poucos dias. Seu líder acabou enforcado nos percalços de uma contra-revolução.
        Embora o romance mantenha o mesmo andamento vigoroso presente nas aventuras do comissário Montalbano, sua exuberância narrativa não deve ser traduzida como falta de profundidade. Enquanto saboreia o habilidoso emprego de arcaísmos e de um léxico rural reinventado, o espírito do leitor é transposto, a cada nova circunstância, para o ambiente e os costumes da época, afigurando-se os contornos sociais de um campesinato espremido entre o clero e a nobreza feudal. A realidade amarga é, por vezes, tingida com as tonalidades irônicas da fantasia e do sobrenatural. Camilleri toma as rédeas do absurdo para explicar as agruras cotidianas daqueles tempos. O fim do romance é um exemplo típico desse contexto: parece banhar-se nos fluidos mágicos do realismo fantástico.
        Por sua vez, várias passagens da história são pontuadas por um humor que remete à simplicidade  grotesca daquele período, beirando o escatológico, mas repleto de sutilidades. A morte, presença constante que inflama os sonhos do protagonista, é tratada com lirismo e doçura – especialmente quando os amores ou os ideais envolvidos são os maiores de sua jornada – e a lâmina de sua foice implacável reflete, como um espelho, os conflitos sociais de um passado áspero e opressivo.
        Como concluir esta resenha? Para fazer jus ao livro, é melhor que seja sem delongas. Resumindo, gostei do que li. Camilleri é um mestre. “O Rei de Girgenti” garante prazer do início ao fim.

Redação

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