Resenha literária: Sándor Márai – De verdade


Sándor Márai – De verdade
Companhia das Letras – 445 páginas

O escritor Sándor Márai nasceu em 1900, numa cidade (Kassa, atual Kosice) da chamada Alta Hungria. Esta cidade, que naquela época pertencia ao Império Austro-Húngaro, situa-se no atual território da Eslováquia. Sándor Márai viveu intensamente a Primeira Grande Guerra, circunstância que se faz presente no contexto de seus muitos romances. Foi censurado pelos comunistas, exilou-se em 1948 e suicidou-se na Califórnia, no ano em que caía o Muro de Berlim, 1989.

 Do mesmo autor, li também “As Brasas”, e parte de outro romance que me desinteressou no meio do caminho, com o título “Os Rebeldes”.
De verdade” é um livro grossinho, meio pesado para ler num trem do metrô, um dos meus espaços de leitura. No trajeto diário de ida-e-volta para o meu trabalho, viajo normalmente de pé, a pasta de executivo numa das mãos, o livro aberto na outra, às vezes amparado por algum apoio disponível, raramente sentado. Dureza. Resolvi encarar as quase quinhentas páginas desse que é o livro da vez. Não é assim tão grande, sejamos francos, mas o peso e o tamanho importam, particularmente quando se lê espremido e em movimento.

 Sándor Márai segue uma linha triste, cujo eixo é o sentimento humano. Tudo o que vai além disso em seus livros pode-se considerar adereço. As poucas descrições do ambiente, as palavras sobre o tempo e o vento em Budapeste, apenas servem de complemento a um minucioso revolver da alma humana. Inundando cada página, a dor irreparável, os rancores petrificados e os mistérios do amor são questões tratadas com profundidade. As personagens parecem mostrar suas impressões sobre a vida de maneira clara e espontânea, mas numa atmosfera de amargura que redescobre velhas cicatrizes. Pairam nessa atmosfera uma sexualidade reprimida, um traço conservador, com suavíssimas alusões de cunho homossexual. Sou levado a crer que, em geral, as mulheres devem se identificar mais com o seu estilo do que os homens, e considero que afirmar isso pode levantar polêmicas interessantes.

 Na primeira de suas quatro partes,”De verdade” tem a forma de um monólogo, narrado e remoído em primeira pessoa por uma mulher. Separada há alguns anos, Ilonka relata a uma amiga, à mesa de uma antiga confeitaria, a história de seu casamento, do filho que viveu apenas dois anos, da convivência com Péter, o marido rico e impenetrável, do desejo mal resolvido de possuir a alma de alguém, do fim do casamento.

 Há passagens que revelam uma moral severa, que já percebi serem habituais na obra do autor, colaborando para acentuar os nuances de traço conservador que mencionei anteriormente. Resvalam numa elegantíssima auto-ajuda, pelo tom apologético, contudo sem termos de comparação com algumas porcarias que encontramos por aí. Esta é a grande diferença. Sándor Márai é um grande escritor. Possui amplo controle do fluxo narrativo. Pensa de maneira consistente. Cria sempre poucos personagens, porém bastante verdadeiros. E sabe desenvolver o conflito interior, direciona a emoção do leitor, enquanto explora as perguntas substanciais da vida. O contraponto à narradora aparece vez por outra na história, como, por exemplo, quando fala da rigidez moral que parece sustentar o comportamento distante do marido: “Não acredito em lágrimas. A dor é sem lágrimas e muda.”, ele diz.

 Na segunda parte do romance, quem fala é o marido. À mesa de um café em Budapeste, Péter despeja diante de um amigo a sua versão da história. Não temos aqui uma contraposição à fala de sua primeira mulher. Temos, antes disso, um aprofundamento. Péter nos faz compreender sua impenetrabilidade, sua solidão. Os hábitos extremamente formais de sua infância, o rigor minucioso da família, os ritos de uma burguesia que se mantinha no poder por trás de uma casca de aparências, a imagem austera do pai, todos estes componentes de sua formação psíquica vão persuadir o leitor sobre sua capacidade, inicialmente absurda, de manter durante anos a fio uma paixão platônica por uma criada, Judit, que vivia na casa de sua mãe, uma jovem de outra classe social, uma plebéia, com quem trocara apenas poucas e desesperadas palavras. É esta paixão oculta que corrói seu primeiro casamento. Quando Judit retorna de Londres, após um exílio que se impusera, Péter deixa a casa, afasta-se do seu círculo social e vai viver com ela.

 Porém, a luta de classes instala-se no interior deste seu novo relacionamento, com tintas de vingança, servilidade e consumo fútil. Como ele mesmo diz, “na vida ninguém pode apostar, impune, corrida contra os desejos”. Péter se sente roubado na alma (fato que ele aceita), nas finanças (o passado pobre de Judit justifica sua atitude preventiva) e na honra (aqui, o olhar de superioridade e desprezo da empregadinha de outrora é a gota d’água para um novo rompimento). Seu destino é a solidão.

 De verdade” terminaria por aqui, como um dístico de dois narradores, mas, quarenta anos depois, o escritor acrescentou-lhe dois novos blocos (denominados “Judit e a fala final”). O terceiro narrador passa a ser, então, a segunda esposa de Péter. Na Itália de 30 anos depois, já separada do rico burguês, ela conversa na cama com um baterista que a ajuda a vender as jóias subtraídas durante seu casamento. Judit descreve a vida luxuosa da nobre família burguesa para a qual trabalhou como empregada doméstica antes de se casar com um dos patrões.

 O conforto propiciado pela riqueza seduzem e, ao mesmo tempo, agridem a narradora. Banheiros separados, pintados em cores diferentes para cada habitante da casa, com rolos de papel higiênico importados, a abundância de roupas e sapatos, os detalhes da sóbria intimidade que partilhou, todas as as passagens de seu relato são denúncias com um travo de humilde respeito e ácido rancor. O que roubar dos ricos para lhes retirar o eterno sorriso amável da expressão? Judit sabe que, mesmo se lhes expropriassem toda riqueza, ainda assim levariam consigo algo inalienável, um espírito de corpo, um senso de classe e superioridade. Esta terceira parte do livro parece a mais longa de todas, exigindo alguma disciplina do leitor, para que não desista ante uma sensação de que está sendo enrolado com um excesso de recorrências.

 O baterista que foi ouvinte de Judit no terceiro bloco torna-se o narrador da quarta e última parte do romance. Segundo suas palavras, ele veio para os Estados Unidos porque não aceitou colaborar com os comunistas alçados ao poder na Hungria depois da Segunda Guerra. Em Nova York, ele trabalha como garçom em um bar. Tem seu carro, seus pequenos luxos, que diz serem maiores do que os desfrutados pelos nobres de outrora em sua terra natal. Vive de crédito, sua dívida de oito mil dólares não é suficiente para perturbá-lo, pois é assim que vivem as pessoas na auto-proclamada América. O patrão faz o proletário engolir tudo a crédito. Antes, esse proletário servia ao patrão, que usufruía diretamente de seus serviços. Agora, se o proletário não usufruir também das benesses, se não comprar como um louco, se ignorar o crédito que lhe é oferecido, o patrão deixa de existir. No trecho abaixo, lembrei-me de uma frase estupenda de Eduardo Galeano, onde ele dizia que “no mundo de hoje, é proibido ficar satisfeito“:

“… trocavam idéias sobre o fato de que nesta grande abundância, na América, poucas eram as pessoas satisfeitas. Nisso eu prestei atenção, porque eu também sentia algo parecido. Quando alguém vinha de fora, do outro lado do oceano, não compreendia… Mas quando se aquecia, virava nativo, como eu… Eu também penso nisso, esfregando o queixo, como quem esqueceu de se barbear. Porque não vale a pena negar que aqui, onde as pessoas têm tudo o que é necessário para a boa vida, felicidade… sabe, felicidade verdadeira, sorridente… é como se ainda não existisse. No vizinho, na Macy’s, você acha tudo o que é necessário para a felicidade terrena. Até isqueiro com chama eterna, num estojo. Mas felicidade não se vende nem lá nem na seção de vitaminas.”

Este é o tom do encerramento do romance, que revela uma nostalgia dos tempos aristocráticos, sem contudo deixar de perscrutá-los com olhar crítico. O escritor expõe seu asco e seu desprezo por nazistas e comunistas que cometeram atrocidades na Hungria, sem mitigar seu proselitismo ideológico de cunho liberal. Contudo, não poupa também o jeito americano de viver baseado no consumismo.

 Muitos críticos consideram “De verdade”  a obra máxima do brilhante escritor húngaro.


Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador