Seria a inteligência um mal?

do blog do Marcio Valley

A inteligência é um bem?

Todo pensamento é produzido pela inteligência e é inexoravelmente viciado por ela própria, sendo isso o que culmina por engendrar, nos seres humanos, o pensamento antropomórfico, ainda que não aparente. Porém, essa é uma característica da inteligência, não dos humanos. Deveras, se as formigas possuíssem inteligência, certamente seus pensamentos tenderiam a imaginá-las como os seres mais importantes do planeta, provavelmente criados à imagem e semelhança da Grande Formiga. A inteligência, a partir da qual surge a razão e produz-se o conhecimento, é algo de dúbio valor. Não há fundamento algum para, por princípio, considerá-la algo de natureza positiva ou coisa sem a qual a vida dos humanos seria pior.

A inteligência nos permitiu uma multiplicação grandiosa, é verdade, mas existem diversos seres que, sem inteligência, nos superam incalculavelmente em número. E essa multiplicação irrazoável tornou-se um fardo para o próprio ser humano, pois se somos hoje bilhões de humanos, temos trilhões de necessidades a serem satisfeitas, pois cada um de nós tem suas próprias demandas materiais e espirituais, demandas que, impossíveis de serem satisfeitas em iguais condições, geram a violência.

A inteligência permitiu a medicina e suas curas de doenças que, antes, matavam milhões, também é verdade. Porém, não fosse a medicina e hoje essas mesmas mortes não mais ocorreriam, impedidas pela seleção natural, que salvaria da mortes os resistentes às doenças, os quais transmitiriam aos seus descendentes essa mesma resistência. As sucessivas epidemias de gripe espanhola, como se sabe, eram cada vez menos agressivas, matando a última muito menos do que a primeira. E os milhões que foram salvos pela medicina são apenas um pequeno contrapeso no prato da balança, cujo outro prato carrega tantos ou mais milhões que foram mortos pelo produto mais refinado da inteligência: as guerras e suas armas cada vez mais tecnológicas.

A inteligência também possibilitou um inacreditável avanço nas técnica de agricultura e, com isso, uma melhor alimentação para um número percentualmente maior de pessoas, é verdade. Mas, sem inteligência e sem agricultura, jamais se ouviu falar de animais mortos de fome em maior proporção do que os bilhões de seres humanos, em toda a história, que já morreram esquálidos ao lado das grandes e verdejantes fazendas de nobres e milionários, ou ainda vizinhos de grandes fábricas de alimentos. A África de um milhão de anos atrás certamente não matou mais seres vivos, hominídeos ou não, de fome do que a de hoje, com toda a imensa inteligência do ser humano.

A inteligência nos faz pensar que dominamos a natureza, ledo engano. A natureza conta os dias em milhões e os anos em bilhões. Somos um mero sopro nesse calendário. E se algum incômodo chegarmos a nela provocar, como aparentemente estamos provocando, Gaia agirá como sempre agiu: eliminará o incômodo e seguirá o seu rumo.

A inteligência nos torna arrogantes a ponto de nos cegar e nos paralisar mesmo em relação às coisas mais evidentes, como a desigualdade dos homens. Nas sociedades sem inteligência, como a das abelhas, por exemplo, os indivíduos trabalham pelo bem comum. Na sociedade que achamos inteligente, a nossa, o trabalho é para o bem privado. Gostamos de pensar que o trabalho enobrece, mas não nos indagamos sobre quem é que tornou-se um nobre. Muitos, empobrecidos, trabalham para enriquecer poucos, seres humanos como eles, porém com muito mais direitos sobre os bens da sociedade, direitos garantidos por lei aos que enobreceram com o trabalho alheio.

A inteligência nos faz aceitar passivamente a abdicação de nosso direito natural ao planeta. Os demais seres vivos não necessitam de passaporte para andar pelo mundo. Somente os humanos são tolhidos em sua liberdade de caminhar pela Terra.

A inteligência faz a maioria dos humanos de bobos. Uma minoria, os poderosos, cria conhecimento, com valores morais e éticos e uma ideologia de dominação, sutilmente impondo-o à sociedade, através da religião e da filosofia, enfim, da educação, fazendo a imensa maioria dos humanos, explorados e pobres, pensarem que tais valores nasceram deles, o que os faz suportarem com resignação a própria miséria. Aliás, a inteligência nos convence de que é mais nobre morrer de fome do que roubar. Animais sem inteligência não são bobos, se um outro intenta retirar-lhes o naco de carne da boca eles rosnam e atacam. Se a ninhada grita, o albatroz rouba o peixe que estava na boca da gaivota.

A soberba da inteligência faz os seres humanos aceitarem a injustiça sob o pálio da manutenção da ordem e da paz. Seres que se consideram inteligentes e acabam por agir como a rã que, colocada em água fria na panela, não nota o gradual aquecimento e consente com o banho, enquanto vai se tornando o prato do dia.

A inteligência não é um mal em si mesma. É como um pitbull cuja genética é ruim e o conduz naturalmente à violência, mas pode ser treinado e tornar-se um animal tranquilo. A inteligência brilhará e cumprirá o seu destino a partir do momento histórico em que se tornar sublime, quando passarmos a utilizá-la para o fim supremo e sua única razão de ser, que é a de tomarmos consciência de nosso papel nesse planeta. Não o ridículo papel de supostos criadores de riqueza ou de multiplicadores da própria espécie, mas o o de guardiões da criação. De toda a criação, com todos os seus seres, inclusive, e talvez principalmente, da pessoa que está ao seu lado revirando o lixo em busca do que comer ou do animal cujo habitat foi reduzido a uma ínfima porção, não mais suficiente para sua sobrevivência.

A inteligência nos brinda com a razão e essa não é capaz de imaginar qualquer outro motivo para a existência da própria inteligência que não seja a de permitir o conhecimento da criação e dela nos maravilharmos, compreendendo, afinal, que, na verdade, jamais saímos do paraíso. Nós o estamos destruindo.

Luis Nassif

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