Debate sobre a institucionalidade do crime organizado, por Hydra

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Foto Midiamax

Debate sobre a institucionalidade do crime organizado

de Hydra

Comentários no post “Xadrez da política do crime da contravenção

É um enorme desafio escrever sobre algo tão complexo.

Vamos considerar alguns tópicos, que ajudam a orientar e afastar alguns lugares comuns…

Primeiro, o crime, ou no caso mais específico brasileiro, a letalidade violenta encontra razão direta com a desigualdade social, não com a pobreza em si.

Os EUA e o Brasil são os países com maior índice de letalidade, e também de desigualdade entre as 20 maiores economias do planeta.

Outro ponto: Não há crime organizado no mercado de varejo de drogas, se houvesse, possivelmente nem estaríamos aqui debatendo o assunto.

A organização está restrita aos escalões de distribuição (atacado) de drogas.

É errado supor que as estruturas do jogo do bicho (essa sim, uma modalidade que pode ser considerada crime organizado, de acordo com os manuais de investigações) deram vazão ao narcotráfico.

Ainda que algumas redes de apoio (armas, por exemplo) pudessem ter pontos em comum (bicho-tráfico), historicamente, assim como as famiglias dos EUA, havia uma rejeição ao comércio de drogas pelos donos da banca.

O bicho evoluiu para as “maquininhas” (caça-níqueis), e hoje estão voltadas para as apostas online (futebol) e as imensas possibilidades desse tipo de negócio.

O que não afasta o fato de que, depois de consolidada como atividade global principal do crime, o tráfico não tenha se utilizado das redes logísticas do jogo.

A globalização das drogas coincide com a demanda dos EUA, na década de 80, de criar um discurso de coesão para a política ultra-liberal de Reagan, que foi o ápice do processo de endurecimento das políticas criminais que buscavam um culpado-padrão (os pretos e pobres), e que graças ao jogo geopolítico espalhou-se como legitimação para intervenções (ver caso colombiano, boliviano e depois, mexicano) e para a disseminação da extensa rede de interesses de negócios envolvidos.

Foi o War on Drugs que criou esse monstro que hoje devora vidas ao redor do mundo.

Nem vamos mencionar o uso paulatino de todas as rotas de comércio de drogas como fonte paralela da CIA para alimentar suas conexões paramilitares da América Latina e Oriente Médio.

Voltando a questão da infiltração no Estado, é preciso apontar outro erro do texto: não houve essa disputa entre as redes de apoio dos bicheiros e as incipientes redes de apoio ao tráfico.

O bicho soube instituconalizar-se, com a criação de uma visão romântica de si mesmos, seja através dos patronos do samba, seja no futebol, tudo possível pela pacificação entre eles mesmos, os capos, que souberam, assim como os mafiosos dos EUA, lotear cada território de atuação.

Claro que em cada época, problemas sucessórios e outros conflitos suspendem essa pax por algum tempo, mas logo depois volta ao “normal”.

No Rio, o último evento foi com Mirinho (filho de Waldomiro, patrono do Salgueiro) e os filhos e genro de Castor de Andrade, cm direito até a atentado a bomba na praia.

O tráfico, por sua natureza agressiva e pulverizada de mercado, ou na linguagem do economês, fragmentada, nunca experimentou essa legitimação, até porque, no imaginário da classe mé(r)dia, era  tráfico o bicho-papão que permitia que concordassem com o extermínio sistemático de nossa juventude pobre e preta.

Vamos aos que interessa:

A questão central é grana.

Com o aumento do arrocho proporcionado pela banca e aceito com gosto pelos golpistas de temer & cia, as polícias voltarão a depender das caixinhas do bicho e de outros “acertos”.

Nem tudo é colocar grana do bolso dos policiais, embora isso seja também uma prática.

As delegacias do Rio que funcionam melhor, hoje em dia são aquelas onde há “ajuda” maior, então, paradoxalmente, ter “acerto” é ter viatura funcionando, preso comendo, papel e outros insumos.

Não é uma questão binária, simplória, do tipo policial corrupto ou policial honesto…isso é um resumo rasteiro e pobre.

Como domar esse monstro.

Se é certo que nunca teremos os colhões para enfrentar o eixo central da questão: acabar com a proibição do comércio e uso de drogas, só há alguns paliativos.

O principal instrumento para vigiar e rastrear valores laváveis pelos cartéis de drogas e seus associados foi desmontado, sob a desculpa do combate ao apetite do Estado por impostos, explico: A CPMF, ou outro tributo com essa natureza (sobre TODA movimentação financeira) era o verdadeiro chip que marcava todo o dinheiro.

Não é à toa que caiu, embora os patos achem quem estavam se livrando de mais um imposto.

Outro ponto que pode ser enfrentado é focar firmemente nos crimes-meio que dão estrutura e poder as facções criminosas nas periferias, ou seja, não adianta enxugar gelo, apreendendo drogas e “fazendo regulação de mercado”, prejudicando uma quadrilha enquanto ajuda outra em alguma periferia vizinha.

Dentre os crimes-meio, o principal é o homicídio, ele é que dá o moleque da favela o poder de intimidar testemunhas e angariar apoio dos seus pares e o medo dos adversários.

Um país que “aceita” 50 mil mortes/ano está dizendo que tudo é permitido.

Outra questão: as armas.

Enquanto não houver um acordo sério para controle de armas, e não falamos de legislações mequetrefes, que acabam por impedir a aquisição apenas por quem quer ter uma arma legalizada, mas controle nas fábricas (Colt, SW, Glock, Sig-Sauer, Forjas Taurus, Rossi, etc), com protocolos que impeçam o que acontece hoje, a letalidade violenta não cederá, pois:

A fábrica lança um manifesto de venda para um determinado cliente (a polícia ou exército de um país) que nunca é conferido, porque, óbvio, o produto é sempre desviado.

As fábricas de armas têm que ser encaradas como sócias do crime, e não como aliadas no combate.

No caso brasileiro, também é preciso enfrentar o mais poderoso agente desse mercado ilegal: as forças armadas.

Envoltas na hipocrisia da “segurança nacional” e no nosso medo atávico de “contrariar” a caserna, esse setor segue sendo o maior fornecedor do crime.

É preciso reformar a legislação e permitir a soltura de traficantes que não estejam associados a outros crimes violentos (roubo, assassinato, tortura, etc).

Tem muito mais, e o debate deve ser intenso.

Mas por agora, é o que consegui lembrar.

 

De Godinho

Não tem crime organizado no varejo de drogas?

ter, 10/01/2017 – 14:27

Onde, amigo? Moro no pé de uma favela, no Rio. Acho que você nunca passou mais do que 1 minuto num local assim.

É organizado, e é no varejo. Tem estrutura de comando, rota de abastecimento, serviço de segurança (rapazotes franzinos fazendo a ronda nas ruas próximas, em motos sem placas…). Têm um pequeno exército, e armas de combate (fuzis .762, .223, .30 e .50 são comuns). Têm até uma pequena previdência: em várias favelas, se o sujeito “morre em combate”, a família recebe uma pequena pensão.

Talvez nos EUA, como sugerem os filmes, o tráfico varejista seja composto basicamente de pequenas gangs locais, sem interligação. Aqui, são grandes estruturas, que controlam, como no Rio, mais de 50% da área urbana. Pergunte a qualquer cidadão (que não seja um PM fanfarrão), se polícia sobe morro quando bem entende. Sobe, mas toma chumbo grosso pela cara, e nunca fica mais do que alguns dias.

 

De Hydra

Esclarecendo…

Não confundir atividade sistêmica, ou sistemática com organização (strictu sensu), que mencionam a literatura sobre o tema.

Organização requer, além de uma hierarquia, divisão de tarefas, e o domínio de uma faixa territorial, que é  o caso nas favelas, uma ação inter-territorial e infiltração no aparelho de Estado.

Requer também uma rede sofisticada de lavagem de dinheiro, o que nem de longe acontece nas favelas, apesar de alguns mequetrefes diversificarem suas atividades para outras modalidades informais ou ilegais (mototáxi, fornecimento de gás, TV a cabo, etc), mas muito distantes da cadeia disponível aos níveis organizados (bancos, paraísos fiscais, mercado imobiliário e de artes, etc).

O arrego pago aos policiais da ponta, feito pelos moleques da favela não compra parcela do poder do Estado.

Traficante de favela não circula fora do seu território, a não ser em casos bem específicos e sua ação se limita ao território onde está vinculado.

As filiações as facções não determinam uma organicidade na ação de varejo, caso contrário, não veríamos as guerras entre comunidades, e haveria uma necessidade bem menor de armas nos pontos de venda.

Como é o caso das maquininhas e do bicho.

Apesar de andarem (quase) sempre desarmados, os aranhas (coletores de apostas) do bicho nunca são importunados pelos traficantes e nem por ladrões, embora andem com grana.

As centrais de apostas idem.

O discurso de “crime organizado” na favela só atende a demanda midiática para legitimar as ações de repressão e extermínio.

O que não quer dizer que esses moleques armados com fuzis não sejam sanguinários.

É preciso entender onde há organização não há tanta violência.

PS: Não só moro perto, com o trabalho cercado por favelas consideradas “salgada” (no jargão policial, violenta).

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

2 Comentários

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  1. debate….

    Acreditar que o Jogo do Bicho não trem ramificações com o Crime Organizado  é muita inocência. Inocência Esquerdopata que acredita no romantismo de Patronos de Escolas de Samba, Velhos e Bons Contraventores, que só querem comandar seu “joguinho”.  É por isto que Fanaticos Ideológicos gostam de vangloriar este tipo de Agremiação de Samba. Academicismos e Ilusões. Talvez até pueris. É uma Lavanderia. E Crime Organizado existe sim. Desembargadores vendendo sentenças. Juízes engavetando processos. Traficantes saindo pela porta da frente dos presídios. Toneladas de Drogas e milhares de armas entrando em Portos e Aeroportos, sem fiscalização alguma. Desembargadora mandando seus Filhos Traficantes cumprirem pena em algum SPA. O restante do Judiciário calando a boca. OAB dizendo amém. Quem controla todo este Poder? O Estado? Está aí o Crime Organizado. Não é teoria. É fato. Fanatismo Ideológico trouxe o RJ e o Brasil aonde esta. Genialidade do Restolho que retornou na Anistia de 1979.  

  2. Concordo com as colocaçoes do
    Concordo com as colocaçoes do Hydra.

    Recortei e colei o comentário que eu fiz no mesmo post do xadrez.

    Comentários
    Dinheiro
    22/02/2018 – 16:53
    A semelhança do trafico com o bicho é que 1) ambos permitem permitem uma receita relativamente estável.

    E 2) no quesito corrupção, por decorrencia de 1, o agente passivo se torna ativo, e vice versa. É o agente público que vai atras do dinheiro.

    Fora isso, nada mais. Só na imaginação. Nem mesmo o recurso à violência se compara.Note-se que no início a bandidagem do trafico não trocava tiro com polícia. Até que chegou o dia em que passaram a ser tratados como bandidos como quaisquer outros.

    A maconha sempre existiu, por gerações e gerações. E a receita sempre foi ridícula.

    A grande mudança ocorreu na virada dos 70/80, com a entrada da cocaína, cuja demanda, inicialmente, se encontrava nas classes mais altas. E depois, somente depois a moda se difundiu.

    Concomitantemente, e por varios fatores objetivamente mensuráveis, os crimes contra o patrimônio passaram a aumentar exponencialmente, ao passo em que os aparatos policiais mostravam debilidade cada vez maior em coibí-los em um cenário de inflação das cidades e de desordem urbana.

    Neste momento que a ideologia da guerra às drogas caiu como uma luva para que se elegessem os varejistas dos morros e periferias como os inimigos públicos número 1.

    Para desviar a atenção dos crimes contra o pa-tri-mo-ni-o.

    Lembrem que a “explicação” para os crimes de roubo e furto era de que “os viciados [os pixotes da vida] precisam roubar pra comprar drogas”.

    Chega a ser engraçado, mais de 40 anos depois, ouvir que quem compra drogas é que “financia” a compra de armas e, por conseguinte, a violência…

    …E de mentira em mentira, lá se vão décadas e décadas, e centenas de milhares de vidas….

    …E muitos milhões e milhoes nos bolsos.

    É aí que o assunto passa a ser de “política”: a desinformação, a manipulação e a mentira passam a ser instrumentos essncias para a conquista do poder.

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