Jessé Souza e o Vigilante-Censor Netflix Pós-Democrático, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Jessé Souza e o Vigilante-Censor Netflix Pós-Democrático

por Fábio de Oliveira Ribeiro

No dia 13 de dezembro de 2018, na Livraria de Vila que fica dentro do Shopping Higienópolis, São Paulo-SP, ocorreu o lançamento do livro “A classe média no espelho”. Participei do evento e gostaria de relatar aqui um episódio que ocorreu antes de Jessé Souza chegar ao local para dar autógrafos.

Cheguei ao local por volta das 18:30 acompanhado de um “camarada” que ajudou a fundar o PT (o primeiro discurso que Lula fez em Osasco-SP foi na prancha de um caminhão dele). Enquanto fiquei na sala do Caixa adquirindo meu exemplar da nova obra de Jessé Souza e outro livro que estava procurando há algum tempo (As línguas do paraíso, de Maurice Olender), o petista histórico foi vasculhar as prateleiras no local em que seria realizada a seção de autógrafos. Após pagar meus livros que comprei, fui encontrá-lo.

Na sala em que ele estava havia alguns clientes da livraria folheando livros, outros aguardavam na fila a chegada de Jessé Souza. Ao passar por dois homens brancos de meia idade sentados num sofá, escutei um deles fazer o seguinte comentário:

Os caras compram esses livros que enchem as cabeças deles de merda. Depois ficam pensando que são intelectuais.”

Esse comentário me pareceu bastante significativo. Ele ilustra muito bem o empobrecimento subjetivo referido por Rubens R.R. Casara em seu livro “Sociedade sem Lei”:

“A razão neoliberal se sustenta diante da hegemonia do vazio do pensamento expressa no visível empobrecimento da linguagem, da ausência de reflexão e de uma percepção democrática de baixíssima intensidade. Qualquer processo reflexivo ou menção aos valores democráticos representam uma ameaça a esse projeto de mercantilização do mundo. Não por acaso, a razão neoliberal levou à substituição do sujeito crítico kantiano pelo consumidor acrítico, do sujeito responsável por suas atitudes pelo ‘a-sujeito’ que protagoniza a banalidade do mal, que é incapaz de refletir sobre as consequências de seus atos.” (Sociedade sem Lei, Rubens R.R, Casara, editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2018, p. 94/95)

O que poderia ser mais inapropriado do que manifestar o desprezo por leitores e escritores dentro de uma livraria? O comentário daquele Vigilante-Censor Netflix Pós-Democrático me pareceu bastante típico da classe média imortalizada por Marilena Chaui e estudada por Jessé Souza. Afinal, ele demonstrou acreditar que é moralmente superior aos demais clientes da livraria que ficam pensando que são intelectuais e aos escritores que escrevem esses livros que enchem as cabeças deles de merda.

As palavras dele parecem confirmar algo que o próprio Jesse Souza afirmou:

“…Os privilégios de uma classe condenam a outra à precariedade eterna, já que não lhe sobra tempo para nada. Enquanto isso, a classe opressora tem cada vez mais oportunidades de avançar e obter conhecimento e riqueza.

A esse aspecto econômico se soma o sadismo, presente no cerne de toda sociedade fundada no trabalho escravo. Ninguém escraviza o outro sem, ao mesmo tempo, negar-lhe a humanidade. Como o outro não deixa de ser humano e resiste na medida do possível, nem que seja por meio de pequenas sabotagens, a humilhação tem de ser reforçada a cada dia. É preciso mostrar que o outro é inferior e está ali apenas para servir.

Com o tempo, o exercício da humilhação se torna prazeroso, multiplicando-se sob as formas da piada suja, do chiste aparentemente apenas de brincadeira, do insulto direto, do preconceito de classe e de raça e, não menos importante, do abuso.” (A classe média no espelho, Estação Brasil, Rio de Janeiro,2018, p. 72)

Aquela ofensa proferida dentro da Livraria da Vila parece revelar tanto o preconceito do ofensor como o prazer que ele sentiu em humilhar leitores e escritores considerados socialmente subalternos ou, pior, racialmente inferiores. Comuniquei o pequeno incidente ao sociólogo no momento em que fui colher meu autógrafo. Jesse riu satisfeito. Suponho que ele realizou um dos objetivos dele ao lançar o livro naquele que pode ser descrito como um bastião da tradicional classe média paulistana.

Jessé Souza se notabilizou por criticar as vacas sagradas do pensamento brasileiro (Raimundo Faoro, Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre). Não tive oportunidade de presenciar o contexto em que a frase “Os caras compram esses livros que enchem as cabeças deles de merda. Depois ficam pensando que são intelectuais.” Assim sendo, devo admitir a hipótese de que o “cidadão de bem” poderia estar se referindo aos autores criticados pelo autor de A classe média no espelho.

Isso melhora muito a situação, pois nesse caso o autor da frase reproduziu tanto a linguagem quanto a ideologia da classe média estudada por Jessé Souza. Afinal, como ele mesmo disse em outra obra:

“Obedecer e compreender uma regra social é antes de tudo uma prática aprendida, e não um conhecimento. A ‘prática’ pode ser articulável, pode explicitar razões e explicações para o seu ‘ser desse modo e não de qualquer outro’, quando desafiada a isso. Mas na maior parte das vezes esse pano de fundo inarticulado permanece implícito, comandando silenciosamente nossa atividade prática e abrangendo muito mais que a moldura das nossas representações conscientes.” (A tolice da inteligência brasileira, Jessé Souza, Leya, Rio de Janeiro, 2018, p. 175)  

O evento protagonizado por Jessé Souza no Shopping Higienópolis foi agradável e cheio de pequenas ironias. Durante a sessão de autógrafos, garçons serviram vinho, canapés e champanhe Moet Chandon (três coisas que a classe média consome mais avidamente do os livros de sociologia que descrevem a imagem dela no espelho).

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

5 Comentários

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  1. Ironicamente falando

    Com o tempo, o exercício da humilhação se torna prazeroso, multiplicando-se sob as formas da piada suja, do chiste aparentemente apenas de brincadeira, do insulto direto, do preconceito de classe e de raça e, não menos importante, do abuso.”

    E alguns desses vocábulos permanecem, com o mesmo significado para alguns, e ou como  um significado esquecido, que  expõe a naturalidade como eram  manifestados e acionados na mente e nas bocas das pessoas.

    Judiar , denegrir, etc… são alguns deles

  2. Frases!!!

     

    Eis aqui uma frase que denota todo o intelectualismo da dupla sentada no sofá. Sorvendo os ares intelectuais de uma livraria, mas com muito nojo, do que nela está escrito.

    “Os caras compram esses livros que enchem as cabeças deles de merda. Depois ficam pensando que são intelectuais.”

     

    òdio mortal ao conteúdo, do livro,  ódio mortal aos intelectuais 

  3. Bravooo,realmente este relato
    Bravooo,realmente este relato me enriqueceu demais, incrível o q sinto agora,uma mistura de satisfação/gratidão,acho q ligou algum botão dentro de mim tipo”tá vendo medíocres racistas são assim mesmo,se acham melhores, vão pro mesmo buraco seu quando morrer, não esquenta com eles não!”
    OBRIGADO FÁBIO !!

  4. Testemunhei bem isso desde

    Testemunhei bem isso desde quando era office-boy aos 13 anos de idade, e ainda hoje, escutando as conversas dos patrões, eles sempre comentavam aquele bordão: “Esse país não merece o povo que tem” Ou seja, a culpa é sempre do povão, do pobre, preto, etc, Deles nunca, né!

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