Karl Marx e o Tribunal da mídia brasileira, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Karl Marx e o Tribunal da mídia brasileira

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Em texto divulgado aqui mesmo no GGN Yanis Varoufakis afirma que:

“A ironia é que o individualismo liberal parece que foi derrotado por um totalitarismo que não é nem fascista, nem comunista, mas emergiu de seu próprio sucesso na legitimação o progresso da marca e mercantilização do nosso espaço pessoal. Para derrotá-lo, e assim resgatar a ideia liberal de liberdade e autocontrole, pode ser necessário reconfigurar completamente os direitos de propriedade sobre os instrumentos cada vez mais digitalizados de produção, distribuição, colaboração e comunicação.

Não seria um paradoxo maravilhoso que, 200 anos depois do nascimento de Karl Marx, decidir que para salvar o liberalismo deve retornar para a ideia de que a liberdade exige um fim à mercantilização sem restrições, e da socialização dos direitos de propriedade sobre bens de capital?”

Decidi começar onde o economista grego terminou porque percebi uma carência na argumentação dele. Varoufakis não fez qualquer referência ao papel que os juízes estão desempenhando no processo de destruição do “…espaço pessoal essencial para o desenvolvimento autônomo de uma individualidade autêntica…”. De fato, no Brasil e em vários outros países “O habitat do liberalismo está desaparecendo” porque os Tribunais criados pelos liberais para aplicar constituições, códigos penais e códigos civis que surgiram justamente para consolidar o poder do liberalismo resolveram limitar o espaço da política em benefício dos interesses bancários ou esvaziar a soberania popular como fonte de investidura do poder (caso específico do Brasil).

O fenômeno não é recente. De fato, ele já havia sido cogitado de maneira não muito explícita por Karl Marx. Numa passagem especialmente eloquente da defesa que apresentou ao Tribunal de Colônia em 1849 disse ele:

“Eu, de minha parte, asseguro-lhes, cavalheiros, eu prefiro acompanhar os grandes acontecimentos mundiais, analisar o rumo da História, a pelejar com ídolos locais, com policiais, com tribunais. Não importa o quanto esses cavalheiros podem se considerar grandes em suas próprias imaginações, eles não são nada, absolutamente anda nas titânicas lutas dos dias de hoje. Considero um verdadeiro sacrifício quando decidimos medir forças com estes oponentes. Mas, de uma vez por todas, é o dever da imprensa tomar a palavra a favor dos oprimidos à sua volta. E também, cavalheiros, a casa de servidão tem seus próprios alicerces nas autoridades políticas e sociais subordinadas, que confrontam diretamente a vida privada da pessoa, o indivíduo vivo. Não basta combater as condições gerais e as altas autoridades. A imprensa precisa decidir entrar na liça contra este policial em particular, este procurador, este administrador municipal. Onde se foi espatifar a Revolução de Março? Ela reformou apenas a mais alta cúpula da política, ela não tocou as bases desta cúpula – a velha burocracia, o velho exército, os velhos tribunais, os velhos juízes que nasceram, foram treinados e ficaram grisalhos no serviço do absolutismo. O primeiro dever da imprensa, portanto, é minar todas as bases do sistema político existente.” (Liberdade de Imprensa, Karl Marx, L&PM Pocket, Porto Alegre, 2010, p. 106/107)

Os neoliberais abduziram financeira e ideologicamente a imprensa. Esse fenômeno é ainda mais deletério no Brasil, pois aqui algumas famílias controlam quase todos os meios de comunicação. Salvo raras exceções, os jornalistas brasileiros não estão a serviço dos oprimidos e sim da opressão. Isso explica porque a imprensa nativa atacou ferozmente os governos petistas que colocaram o Estado a serviço dos oprimidos e protegem as lideranças políticas que deram um golpe de estado para revitalizar a opressão financeira, empresarial, ruralista e escravocrata.  

Lula e Dilma Rousseff fizeram muito. Não fizeram mais porque foram impedidos de agir. Os líderes da reação ao Estado de bem-estar social foram a “…velha burocracia, o velho exército, os velhos tribunais, os velhos juízes que nasceram, foram treinados e ficaram grisalhos no serviço…” durante a Ditadura Militar e os novos juristas autoritários formados nas Faculdades em que eles davam aulas. Severamente censurada durante o período 1964/1985, a imprensa brasileira não demorou a consolidar sua aliança com os velhos inimigos da democracia (e do liberalismo esclarecido). Quando foi chacoalhada nas ruas, a estrutura de poder que estava sendo construída pelo PT ruiu como se suas funções simplesmente não existissem (e de fato elas não existiam). Isso explica, aliás, porque a reação ao golpe de estado de 2016 e à prisão de Lula em 2018 não ocorreu.

A revolução brasileira também fracassou pelos mesmos motivos que foram apontados por Marx em 1849, com uma única diferença. No Brasil, a imprensa não apenas se aliou aos Tribunais. Ela conseguiu substituí-los. Tanto isso é verdade que Gilmar Mendes (um jurista conservador e adversário de várias políticas públicas do PT) disse textualmente que a Globo News age como se fosse a 3ª Turma do STF https://www.diariodocentrodomundo.com.br/video-gilmar-mendes-chama-globonews-de-terceira-turma-do-supremo-tribunal-federal/.

Varoufakis sugere que é preciso “…resgatar a ideia liberal de liberdade e autocontrole…”. O problema é que isso não pode ser feito num contexto em que os Tribunais foram privatizados, em que os juízes abandonaram os ideais do liberalismo que fundamentam o Estado de Direito: igualdade perante a Lei; investidura do poder por intermédio de eleições; direito dos candidatos se apresentarem sem serem impedidos pelos juízes; respeito da autonomia do “campo político” pelos Tribunais e; garantia de pluralidade jornalística.

Esses são temas em torno dos quais as eleições presidenciais deveriam girar. Mas não creio que isso possa ocorrer, pois a esquerda se encontra totalmente mergulhada numa disputa com esses cavalheiros que “…não são nada, absolutamente anda nas titânicas lutas dos dias de hoje.” 

Marx defendeu de maneira eloquente a liberdade de imprensa. A roda do mundo girou e agora a liberdade de imprensa foi colocada a serviço do absolutismo financeiro. Portanto, nesse contexto os marxistas terão que virar o mestre pelo avesso. O controle da imprensa pode se tornar absolutamente necessário para reestabelecer o Estado de Direito e a autoridade dos princípios liberais que nortearam sua criação.

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

3 Comentários

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  1. Parabéns ao Fábio pela

    Parabéns ao Fábio pela qualidade de suas observações. A grande mídia tornou-se uma organização criminosa. Sem uma reviravolta nesse cenário, a revolução se fará com paus e pedras. Começo a perceber pessoas que eram da classe média trabalhando como camelôs nas ruas de  São Paulo.

  2. Verdade, caro Fabio, também

    Verdade, caro Fabio, também esse ramo comercial, o das firmas privadas que produzem entretenimento noticioso, está tomado pela ideia de que pode fornecer recurso para quem deseja se alienar impunemente. Mas todas as firmas privadas fazem, cada qual à sua maneira, esse movimento. Um cidadão que se sinta prejudicado por algo que adquire, por exemplo um usuário da telefonia móvel, como será que se sente ao perceber que nada pode contra a operadora que usa? Engrandecido ou diminuido? Forte em seus direitos a serviço justo e de qualidade ou fraco ante o gigantismo burocrático, protegido por um estado liberal quase inexistente? Um usuário do sistema Sabesp ou AES Eletropaulo?

    E como previu o Pedro Aleixo, “o problema é o guarda da esquina”, repara só a arrogância com que se é atendido mesmo na padaria da esquina… É como se o dono da padaria se achasse o próprio dono da Vodafone, talvez por “fechar” com o golpe, por seguir patos-da-fiesp, como se o importante não fosse o cliente e sim o dono do “negócio”. E isso se repte com médicos, advogados, açougueiros… essa “doença” pega, e qualquer micro-mini-empresário esquece a regra número um do comércio: “o cliente tem sempre razão”.

    Momentos liberais muito ruins…

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