O fantasma do petismo em um festival de equívocos, por Roberto Bitencourt da Silva

Mas, o que aqui me traz e realmente incomodou no artigo de Lúcio Vieira é a absoluta falta de rigor na avaliação não somente do meu texto, como da minha pessoa.

Reprodução Twitter

O fantasma do petismo em um festival de equívocos

por Roberto Bitencourt da Silva

Há alguns anos escrevendo no espaço generosamente aberto pela equipe editorial do jornal GGN, tenho travado contato com diversas formas de recepção dos meus modestos escritos. São comentários de leitores que demonstram sintonia e simpatia com algumas ideias esposadas. São também críticas pertinentes e serenas, que me incentivam a necessariamente refinar argumentos.

Contudo, é bastante usual a circulação de modos destemperados e apressados na leitura de textos meus e, não raro, incongruentes com qualquer aspecto que diga respeito a assuntos abordados. Sobretudo ao tratar de personagens, fatos e circunstâncias que guardem relação com o universo político partidário-eleitoral. É um fenômeno compreensível, por mexer no vespeiro das convicções e das paixões políticas dos leitores.

Após algum tempo tratando de questões mais diretamente relacionadas com a geopolítica, voltei nestes dias a esse espaço jornalístico para expressar opinião acerca de fatos da nossa política institucional cotidiana. Uma escolha feita por alguém que pretende ser contemporâneo do seu tempo, mas que não deixa de se incomodar com o verdadeiro fetiche que as eleições e as práticas e instituições da frágil democracia representativa brasileira representa para amplos setores progressistas.

Como já me manifestei em tantas outras oportunidades por aqui, entendo que ações e organizações sindicais, populares e extraparlamentares são vitais para a ruptura com o lastimável estado acentuadamente neocolonial em que se encontra o Brasil. Não deposito a esperança acalentada por muitos entre as esquerdas e as frações progressistas da sociedade brasileira, esperança exclusivamente depositada nos processos eleitorais e nas demais vias institucionais. Por isso, ao fazer considerações a respeito da seara política estabelecida, os seus atores individuais e coletivos, procuro fazer com certa frieza e distanciamento, sem almejar, por óbvio, qualquer pretensão, inalcançável, de neutralidade.

Dito isso, dias atrás publiquei o artigo “A inflexão de Ciro Gomes à direita e a questão cubana” (GGN, 19 jul. 2021). Um texto de no máximo página e meia que tinha em vista criticar o líder pedetista no tocante ao seu posicionamento sobre Cuba. Resumidamente, o pronunciamento feito por Ciro em torno da questão cubana me pareceu impróprio, notadamente por integrar as fileiras do partido criado por Leonel Brizola, um ícone nacionalista e anti-imperialista, que sempre manifestou explícito apoio à Revolução Cubana e ao seu governo.

Link para o texto: https://jornalggn.com.br/destaque-secundario/a-inflexao-de-ciro-gomes-a-direita-e-a-questao-cubana-por-roberto-bitencourt-da-silva/

Um artigo absolutamente despretensioso, redigido com a especial motivação de oferecer algumas palavras em defesa de Cuba, contra as genocidas sanções econômicas, unilaterais, secundárias e extraterritoriais, promovidas pelos EUA, violando o direito internacional. Por outro lado, Ciro Gomes, como liderança política respeitável que é, ao se colocar em uma posição intermediária entre os EUA (contra o embargo imperialista) e Cuba (contra a ditadura), me pareceu levar água para o moinho reacionário e entreguista. Além de se distanciar da histórica trajetória anti-imperialista do trabalhismo.

Dito isso, ontem tropecei com um artigo publicado pelo historiador Flávio Lúcio Vieira, tecendo críticas ácidas ao meu aludido texto. Raramente respondo às críticas, por que elas fazem naturalmente parte do jogo. Se as consideramos adequadas, incorporamos os ensinamentos eventuais. Em caso contrário deixamos de lado.

O artigo crítico em questão: https://jornalggn.com.br/destaque-secundario/a-intelectualidade-petista-naturalizou-a-adesao-ao-neoliberalismo-por-flavio-lucio-vieira/

Mas, o que aqui me traz e realmente incomodou no artigo de Lúcio Vieira é a absoluta falta de rigor na avaliação não somente do meu texto, como da minha pessoa. Atribui a mim ideias e posições políticas que não tenho a menor ideia de onde tirou. O autor faz observações que uma pesquisa de 5 minutos no Google permitiria a ele evitar. Uma desonestidade intelectual, totalmente incompatível com o ofício do professor-pesquisador.

O título e o mote do artigo de Lúcio Vieira são autoexplicativos: ele deixa claro que há necessidade de criticar o “intelectual petista”, que “naturalizou o neoliberalismo”. Partindo do pressuposto de que o autor possui simpatias com Ciro (seu artigo defende ardorosamente o pedetista), é plausível imaginar que circunstanciais debates que faça com o petismo falaram mais alto na redação do seu texto. Uma espécie de voz interna. Por fazer uma crítica pontual a Ciro, virei “petista”, “neoliberal” e “reacionário”.

O curioso, que o autor não sabe, como demonstrou, nem interessa saber, mas faço questão de frisar porque as acusações e ilações são inaceitáveis: votei em Ciro no primeiro turno das eleições de 2018. Como, de resto, isso enquanto mero gesto participativo que uma eleição provoca, voto em candidatos de diferentes siglas: PCB, Psol, PT etc., a depender das circunstâncias eleitorais e das chances dos segmentos mais à esquerda.

O único partido ao qual já me filiei é precisamente o PDT. Mantenho essa filiação formal devido a um misto de inércia, preguiça, mas igualmente de laço afetivo remoto, uma lembrança do bom e velho caudilho Leonel Brizola. 

Além disso, sendo questionado por dar um “sentido muito particular à tradição do trabalhismo que Brizola representa”, para usar um jargão da moda, me sinto à vontade para afirmar que possuo algum “lugar de fala” a respeito. Nos últimos anos publiquei dois livros, frutos de pesquisas de doutorado e pós-doutorado em História Política na UFF, que se propõem a mapear e analisar as ideias, os projetos e as trajetórias políticas de dois símbolos do trabalhismo pré-1964: Alberto Pasqualini e Sergio Magalhães. Os livros receberam estes títulos: “Sergio Magalhães e suas trincheiras: nacionalismo, trabalhismo e anti-imperialismo – uma biografia política” (Jundiaí-SP: Paco, 2017) e “Alberto Pasqualini: trajetória política e pensamento trabalhista” (EdUFF: Faperj, Niterói: Rio de Janeiro, 2013).

Lúcio Vieira alega que possuo “preconceito” com o desenvolvimentismo que identifico nas propostas de Ciro Gomes. A crítica que faço ao desenvolvimentismo, sobretudo às suas limitações nas condições singulares de um país capitalista dependente e subalterno, guarda relação, basicamente, com os instrumentos de política econômica tradicionalmente mobilizados pela estratégia desenvolvimentista, bem como a sua necessidade de compor algum tipo de coalizão política e social interclasses, ficando na dependência de acordos com frações das classes dominantes. Tem nada a ver com “preconceito”, mas sim com avaliação do cenário econômico, social e político das últimas décadas, e com o acelerado curso dos acontecimentos recentes.

Entendo que o (neo)desenvolvimentismo tem exíguas possibilidades, seja de extração cirista, seja menos articulado e mais vago, como o do lulopetismo: os segmentos domésticos das classes dominantes brasileiras entraram em processo de “compradorização”, isto é, estão hoje completamente destituídos de qualquer laivo de interesse nacional.

Para maiores esclarecimentos a respeito, faço menção a livro que recentemente publiquei, em especial a um capítulo que busca analisar as experiências históricas e alguns paradigmas teóricos em torno das fronteiras entre nacionalismo e desenvolvimentismo, acentuando a erosão célere e mais recente do ambiente político e econômico que viabilizou historicamente o desenvolvimentismo brasileiro. O livro se chama “História e dimensões do imperialismo: a crescente dependência externa do Brasil” (Jundiaí: Paco, 2021).

Ademais, entre outras críticas, o autor afirma que eu pouco me esforcei “em discutir as ideias e o programa de Ciro Gomes”. Uma crítica inócua. Não tinha o menor interesse em fazer isso no artigo referido, privilegiando uma contestação ao posicionamento de Ciro em torno de Cuba. Mas, no ano passado fiz uma resenha do importante livro de Ciro. Para o leitor interessado o texto pode ser acessado por aqui: https://jornalggn.com.br/artigos/observacoes-sobre-o-importante-livro-de-ciro-gomes-por-roberto-bitencourt-da-silva/

Me parece que as principais questões a serem assinaladas no texto de Flávio Lúcio Vieira são estas. Para um socialista, nacionalista, anti-imperialista, ser vil e irresponsavelmente acusado de reacionarismo neoliberal, realmente, é prova de que o debate público brasileiro anda requerendo maior serenidade e seriedade.

Infelizmente, no afã de “lacrar”, criticar, senão desqualificar ideias e pessoas divergentes, o fantasma do petismo leva muitos à promoção de um festival de equívocos, fantasma este tendendo a ser vulgarmente explorado não só pelas direitas declaradas e desavergonhadas.

Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

3 Comentários

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  1. ou seja, o q se depreende ao final eh q o ódio ao luloptismo segue latente na sociedade. mais, ampliou-se em camadas progressistas. ódio e ressentimento pela covardia e traição do luloptismo ocorrida em 18. eu mesmo, serei a favor de qq um contra lula em 22. mesmo q isso signifique cravar o 17 na urna eletrônica não auditável (mesmo tendo votado no pt em TODAS as eleições desde 1998)!

  2. Parabéns !! é isso mesmo que está acontecendo, em tempos de redes antissociais o debate morreu. Basta apresentar alguma contradição e os defensores do Ciro, Lula e Bolsonaro já aparecem com suas ” opiniões “, parece que falam com algum espelho e não com um interlocutor. dá um cansaço . . .

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