Debate

SUS, saúde global e equidade, no segundo seminário do IX Congresso Interno da Fiocruz

do CEE Fiocruz

SUS, saúde global e equidade, no segundo seminário do IX Congresso Interno da Fiocruz

por Andréa Vilhena, Daiane Batista e Eliane Bardanachvili

Corremos o risco de uma “endemização segregada” da Covid-19, em que os mais vulneráveis, no momento em que deixarem de ser ameaça ao controle da pandemia, deixarão também de ser alvo de necessários cuidados, e uma superação desse cenário adverso não se estenderá de modo equitativo a toda a população. A reflexão foi apresentada pelo professor e sanitarista Naomar de Almeida Filho, em conferência realizada em 6/10/2021, pelo Youtube, no seminário Desafios da Saúde e a Fiocruz do futuro. Esse foi o segundo evento preparatório do IX Congresso Interno da Fiocruz, instância máxima de representação institucional, que definirá suas diretrizes para os próximos quatro anos, com plenária marcada para dezembro. 

A conferência de Naomar, professor da UFBA e da USP, teve como debatedores a pesquisadora e vice-diretora de Pesquisa e Inovação da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Luciana Lima, e o pesquisador emérito da instituição Samuel Goldenberg, com mediação de Carlos Gadelha, coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho. 

Os seminários preparatórios discutirão, ainda, até novembro, os temas: Desafios da Mudança climática e do ambiente e a Fiocruz do futuro e Desafios da Ciência e da Inovação e a Fiocruz do futuro, com coordenação do CEE-Fiocruz.  O primeiro evento da série, sobre o mundo do trabalho, foi realizado em 15/9. 

“Cada vez mais reafirmamos o papel da Fiocruz como instituição estratégica de Estado, e também nosso papel no Sistema Único de Saúde e na saúde global”, destacou a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, na abertura do segundo seminário. “É impossível dissociar uma discussão da saúde nacional, na perspectiva do SUS, sem se discutir a perspectiva global. Essa pandemia evidenciou o que há muito defendemos: tratar a saúde como algo mais amplo. Uma ação global é um desafio da Fiocruz”, disse Nísia, lembrando que 85% das vacinas do mundo foram aplicadas em apenas 11% dos países.

Participaram da mesa de abertura, ainda, Mario Moreira, coordenador da comissão organizadora do Congresso Interno, que lembrou já estar circulando o documento-base que dá início às discussões rumo à consolidação do documento final em dezembro, e o chefe de Gabinete da Presidência, Juliano Lima, também integrante da comissão, reforçando que todas as unidades e câmaras técnicas da Fiocruz, bem como representações de segmentos da sociedade que têm interface com a instituição, poderão dar suas contribuições ao documento.

“Participar, construir junto, debater, levantar questões, mudar de ideia fazem parte da nossa vida e são modelos bem-sucedidos e eficientes para dar respostas aos desafios da sociedade”, observou Carlos Gadelha.

Naomar iniciou sua exposição destacando que as discussões que tomam como foco o futuro vêm mobilizando as agendas de debates, em função da pandemia. O futuro após a pandemia para educação superior globalas implicações da Covid para os ecossistemas de cuidado à saúde; e a construção da Agenda 2030 foram alguns exemplos de temas de reportagens e outras publicações em circulação trazidos pelo conferencista. Ele citou ainda o novo livro do pensador português Boaventura de Sousa Santos, O futuro começa agora, do qual escreveu a apresentação. “Há uma preocupação em prospectar temas e problemas, em função de um contexto, de uma conjuntura”, considerou.

Assista à íntegra do seminário Desafios da Saúde e a Fiocruz do futuro. 

Para orientar sua apresentação, Naomar trouxe ao debate o que chamou de “um rol de questões cruciais”, iniciando pela identificação de um “cenário de macrotendências econômicas, tecnológicas, sociais, políticas e culturais”, permeado por contradições. “Emerge nesse cenário uma combinação estranha de fundamentalismo-conservadorismo, político e cultural com uma perspectiva que se apresenta como contemporânea e inovadora, de que a economia traz uma inovação”, analisou. 

Ao identificar uma situação “de grande incerteza” na atualidade, Naomar observou que, mais do que um suposto progresso tecnológico, tem-se uma “intensificação tecnológica da vida, em aparente contradição com a questão da equidade”. As relações mediadas pela tecnologia, considerou, levam a fenômenos como a uberização, “uma certa liberação de segundo nível da força de trabalho, tornando-a atomizada e individualizada”, conforme definiu, e à terceirização “para outros sujeitos de etapas e responsabilidades em processos de produção e gestão”.

Para Naomar, a rápida incorporação no mundo de “uma conectividade que permeia tudo, infiltrada em tantos elementos da vida”, é “a base da base econômica” neste momento. Ele chamou atenção para o processo de globalização, indicador de “uma espécie de ubiquidade do modo de produção capitalista, mesmo assumindo diferentes formas em diferentes territórios”. E identificou um “hipercapitalismo globalizado” e seu resultado: “Uma política dominada por corporações transnacionais, da qual emergem fundamentalismos e modos extremamente individualistas de pensar o mundo, com baixo teor de um pensamento social, coletivo”. Citando Boaventura de Sousa Santos, o professor classificou esse processo como de um “fascismo social”. 

Ainda na análise da sociedade capitalista da atualidade, ele apresentou a noção de capitalismo da vigilância ou da supervisão. “Trata-se da perversão observada no acesso direto a essa cobertura tecnológica, em troca da produção de informações. Implanta-se para o campo da saúde uma lógica que já é a do cotidiano social em muitos lugares, na qual o problema não é mais falta de acesso, mas o excesso de conexão digital, fazendo com que toda a vida possa ser supervisionada, ou seja, possa ter uma visão de cima, a metáfora de um drone, acompanhando alguém que realiza alguma coisa imprópria”.

O cenário incerto, permeado pelo progresso tecnológico e por embates entre liberdade de informação versus a segurança global e entre o “mercado absoluto” e o “Estado total”, é também um cenário marcado por “desigualdades extremas”, observou Naomar, indagando: “Como fica o direito à saúde, uma vez que, nesse cenário, há uma restrição ou tentativa de restrição de direitos, um retrocesso nos direitos construídos desde o Iluminismo, e também por meio de lutas sociais intensas?”. 

O professor trouxe à tona um debate sobre o papel do Estado e a conformação de um Estado predador. “O Estado é uma invenção fantástica, o sonho do Iluminismo, um dispositivo capaz de regular e gerenciar, do ponto de vista jurídico e normativo, o cotidiano dos sujeitos, como fator de civilidade, baseada na ideia de cidadania”, definiu. “Esse Estado evolui para até se pensar no Estado do bem-estar social, no qual é possível a convivência do liberalismo clássico com um Estado político democrático”, prosseguiu, observando, no entanto, que “é possível pensar que, em certas conjunturas regionais, o Estado funciona muito mais como predador das forças vivas da sociedade e promotor de vetores da destruição e da morte”. Para ele, essa é uma discussão importante para se pensar a Saúde, hoje e no futuro. 

Naomar chama atenção para o entendimento de que o conhecimento é, hoje, o “ativo mais importante do sistema econômico”, em que o valor passa a ser mais da inteligência, “ativo central dos processos produtivos”, do que da matéria-prima. Nesse sentido, apontou, sobressai o papel das instituições de formação e produção de conhecimento, como a Fiocruz, que devem assumir seu protagonismo. 

Atendendo ao convite de Naomar de dar início a um debate das questões trazidas até ali, Carlos Gadelha ponderou: “Há uma certa descrença no Estado iluminista, como se as promessas do Estado gerador de bem-estar tivessem sido abaladas. E coloca-se a indagação quanto ao papel que sobra para a nação, para a democracia, enfim, para as construções iluministas, bem como quanto à construção das utopias que vêm com a modernidade, como um desenvolvimento que seja compatível com a preservação da vida e do planeta”, observou.

Ele trouxe ao debate também a noção de Estado empreendedor, igualmente em conformação, tomando-se o Estado não como uma “repartição pública”, e sim em um movimento de apropriar-se de conhecimentos como a internet e a inteligência artificial, “sempre com um DNA público e estatal”, conforme ressaltou. “Mas isso cria uma tensão com o Estado predador”, considerou. 

A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, também trouxe questões ao debate. “Temos a tendência, ainda, de pensar os fundamentalismos como retrocessos, quando são na verdade produtos da contemporaneidade. Talvez por nos termos formado em uma matriz iluminista, tendemos a ver como retrocesso o que na verdade é uma produção deste moderno com suas injustiças e contradições”, analisou, alertando para a importância de não se perder de vista a potência que existe na sociedade, capaz historicamente de grandes movimentos de transformação. “E pensar isso no caso do Brasil, com sua tradição de pensamento crítico, e uma história da comunidade científica com uma agenda de questões importantes para o país”, destacou. ”A sociedade não está parada”. 

Naomar observou ser possível afirmar que, no Brasil, “nunca fomos iluministas”. Para ele uma fachada constitucionalista foi incorporada ao Estado que continuou autoritário. “Fez-se como Estado independente, do ponto de vista formal, mas em que os valores do colonialismo, a escravidão, o patrimonialismo, a violência continuaram, com um certo respaldo constitucional”, apontou. “Na reconstrução da democracia, inúmeros elementos fundantes do Estado de mal-estar social, tirânico, totalitário, persistem”. 

O professor chamou atenção também para a centralidade da ideia de comunidade, “no sentido de relações entre sujeitos que não são geridas pelo nepotismo ou pelo vínculo primário, de parentesco, e sim pelos laços de solidariedade, de construção conjunta, que tenha o comum à frente do privado”. 

Nesse sentido, considerou que se realiza “de modo muito tímido” a discussão privado versus público. “O fato de que o público é interpretado entre nós como exclusivamente estatal é um problema conceitual, no qual uma suspeição generalizada se aplica a tudo o que não é regido por uma determinada lógica jurídica. Há uma administração pela suspeita. Isso incide especialmente sobre a Saúde. E incide também na Educação”, avaliou, indagando sobre a Fiocruz a partir dessa análise: “A Fiocruz é uma instituição em que se sobrepõem o campo da saúde e o campo da formação dos sujeitos. Como fica uma instituição de Estado, rigorosamente de política pública, em um Estado que não tem constrangimento em se declarar apropriado pelos vetores da privatização, da exclusão?”. 

A pesquisadora Luciana Dias, uma das convidadas como debatedora no seminário, destacou em sua exposição o papel da Fiocruz como instituição estratégica do Sistema Único de Saúde. “O SUS aqui compreendido de forma ampla, como um sistema complexo e dinâmico que se conecta a outros sistemas e que não pode ser tomado, portanto, de forma isolada ou independente”, definiu. “O que afeta o SUS repercute na Fiocruz; e a atuação da Fiocruz impacta fortemente no SUS, dado o seu importante papel na ciência e tecnologia, na saúde pública e também nas redes e conexões que a instituição permite fazer do sistema de saúde com outros sistemas”, explicou, ressaltando a defesa do SUS entendido como sistema universal como um dos temas centrais e transversais do Congresso Interno. 

Ao levar em conta os “movimentos contraditórios” em curso no mundo, Luciana observou que o contexto atual traz, ao lado das muitas incertezas, muitas possibilidades. “Isso nos permite a ousadia de fazer apostas no futuro”, considerou. 

A pesquisadora destacou sete conjuntos de temas relacionados às grandes transformações  que vivenciamos, e que se relacionam com o SUS. O primeiro conjunto refere-se às transformações demográficas e epidemiológicas, no que diz respeito ao processo de envelhecimento pelo qual passam o país e o mundo. Aumento de condições crônicas e de doenças relacionadas ao padrão alimentar, de violências, de sofrimento mental foram alguns dos problemas citados a serem enfrentados, ao lado de um aumento da frequência de emergências sanitárias, desastres ambientais e pandemias. “Tudo isso repercute sobre o SUS, que deve ser capaz de organizar ações, serviços e prover o cuidado de forma coordenada e articulada com outras áreas das políticas públicas em tempo oportuno”, defendeu, destacando a importância da abordagem intersetorial das políticas públicas. 

Um segundo grupo de transformações citado por Luciana relaciona-se ao desenvolvimento científico e tecnológico e à inovação, que repercute na área da Saúde, em seu papel de geradora de conhecimentos e tecnologias para diferentes setores. “Carlos Gadelha, na concepção do Complexo Industrial da Saúde, sempre chama a atenção para as fortes conexões entre serviços e indústria e como tudo isso se conecta, em um processo que envolve a inovação”. Ela defendeu a “inovação responsável em saúde”, que leva à busca de soluções “eticamente aceitáveis, sustentáveis e socialmente desejáveis”, lembrando que o conhecimento biomédico, bem como as tecnologias preventivas e terapêuticas e os medicamentos e vacinas estão no centro do poder da geopolítica internacional. “Grande parte das pesquisas científicas na área biomédica é produzida nos países centrais, com proteção por patentes, o que eleva os custos e agrava as situações de desigualdades de acesso”. 

Para Luciana, ainda, é preciso enfrentar também as políticas de austeridade fiscal sobre os orçamentos vinculados às atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação.  “Não há como avançar nas políticas sociais e na garantia dos direitos sem superar a política de austeridade que nos escraviza atualmente”, considerou.  

O terceiro grupo de transformações, prosseguiu, está associado às tecnologias de informação e comunicação, com aspectos negativos e positivos. De um lado, observou, é preciso considerar as desigualdades de acesso à internet no Brasil. De outro, essas tecnologias podem prover, se tomadas de forma adequada, o cuidado da saúde das populações. “Nesse cenário, o reconhecimento da comunicação e informação como direito de todos e o investimento na comunicação institucional, na comunicação pública e na divulgação científica na Fiocruz é estratégico e deve considerar o rol das novas tecnologias, os diferentes formatos e linguagens”.

No quarto grupo de transformações, Luciana situou as questões climática e ambiental – tema do terceiro seminário preparatório ao Congresso Interno. “As relações entre saúde e ambiente e sustentabilidade constituem um dos grandes desafios do século XXI”, considerou. Um quinto conjunto de transformações está relacionado ao mundo do trabalho, tema do seminário de abertura.  “A área da Saúde, composta por diferentes e importantes segmentos da esfera produtiva a prestação de serviço, tem se colocado como espaço em que essas mudanças vêm ocorrendo de forma intensa, com consequências diretas sobre o trabalhadores e sobre o mercado de trabalho. “Temos que nos abrir a esses temas que envolvem a formação dos nossos alunos, a qualificação profissional, a gestão do trabalho e todas as organizações que conformam o SUS”, conclamou.

A concentração de riqueza e o agravamento das desigualdades sociais e de saúde no país conformam o sexto conjunto de transformações definido por Luciana. “No Brasil, a pandemia afetou de maneira mais intensa grupos historicamente vulnerabilizados e sistematicamente excluídos, pessoas com baixo grau de escolaridade, desempregados, trabalhadores temporários, que vivem em condições insalubres, em regiões desassistidas, em situação de rua (ou) em moradias precárias”, considerou, apontando para a importância de medidas de proteção social voltadas a essas populações e o papel fundamental do SUS e de outras políticas públicas para superar “a perversidade da desigualdade estrutural, potencializada pela pandemia”.

Como sétimo e último conjunto, situam-se as questões relacionadas à expansão do setor privado com ou sem fins lucrativos. Luciana lembra que essa expansão deu-se de forma concomitante ao processo de consolidação do SUS e, hoje, tem papel importante na gestão da prestação de serviços públicos, como é o caso das organizações sociais (OSs) e do acesso a tecnologias médicas, principalmente, na área de serviços laboratoriais especializados. “Observamos, também, uma reconfiguração do segmento suplementar, com incremento dos mecanismos de intermediação financeira, estímulo à conformação de grandes grupos capitalistas na área, fenômeno que estudiosos estão denominando como financeirização e que vem atravessando vários segmentos na área da saúde”. 

A pesquisadora chamou a atenção para a relação entre Estado, mercado e sociedade, na qual observa que “o Estado se enfraquece, o mercado se fortalece e a sociedade, repleta hoje de contradições, nos coloca enormes desafios”. Para ela, a fragilização do Estado se deve à desconstrução da institucionalidade conferida pela Constituição de 1988. “A desconstrução do Estado não se dá só do ponto de vista legal; vem se dando por dentro”, afirmou. “O contexto da saúde é extremamente complexo e coloca para a Fiocruz o desafio de articular diferentes saberes e expertises, organizações acadêmicas e da sociedade para a construção desse projeto de futuro, que não deixa de ter o SUS como locus central”. 

“A Fiocruz precisa se conhecer”, conclamou o pesquisador emérito da instituição Samuel Goldenberg, em sua exposição como debatedor. Para Goldenberg, é preciso direcionar o foco para ações que traduzam com maior eficácia o que a Fiocruz produz para sociedade. “Dessa maneira, fortalecemos ainda mais o SUS, que é o nosso objetivo maior”, destacou, propondo uma autocrítica: “Temos que mapear nossas debilidades para que possamos construir um futuro”. 

De acordo com o pesquisador, a Fiocruz precisa modificar seu presente, que ainda está muito alinhado a modelos de “fazer ciência do século passado”. Ele apontou para dois horizontes, tendo em vista a Fiocruz do futuro. “Ou iremos seguir o modelo repetitivo, em que envasamos e reproduzimos conhecimentos científicos, ou iremos enveredar por um modelo inovador, com potencial de geração de novos conhecimentos, que podem levar a novos desenvolvimentos tecnológicos”, indicou. “O problema do modelo repetitivo é que, com muita frequência, acabamos comprando caixas-pretas, ou somos alvos de transferência de tecnologias que não são necessariamente última geração. Então, é importante seguirmos o modelo inovador e disruptivo, porque esse é o modelo em que vamos ter propriedade e domínio dos dos produtos transferidos à sociedade”, aconselhou.

Goldenberg destacou a importância da ciência diante da Covid-19, entendendo que o enfrentamento da pandemia só tem sido possível graças a uma base de pesquisa científica internacional previamente estabelecida, em um sistema de capilaridade de redes. “Esse sistema permitiu a circulação da informação rapidamente. A base científica é muito importante, e é preciso ter em mente que os resultados não são imediatos, que a ciência não é imediatista nos seus resultados”, lembrou. 

Ele criticou o fato de o Brasil não ter criado uma tradição em uma linha de pesquisa. “A inovação de que tanto falamos e que tanto valorizamos só se concretiza com uma base científica de sustentação e com a transferência do conhecimento gerado como um produto para a sociedade”, destacou. 

Goldenberg lembrou que o sistema de ciência, tecnologia e inovação no Brasil tem sido duramente atacado nos últimos anos com corte de recursos, enquanto, nos países centrais, a pesquisa científica recebe investimentos vultosos. “Hoje, o investimento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) é o mesmo do ano 2000, são vinte anos em que não saímos do lugar!”.

Ele citou áreas de investimento que podem fazer a diferença, inclusive, no contexto internacional, como a de base e análise de dados. “A disponibilidade de dados e a capacidade de analisá-los e transpô-los para diferentes modelos é uma ferramenta importante no mercado da inovação e na tomada de decisões em saúde pública”, considerou. “Temos investido recursos na estruturação de armazenamento de dados, e o compartilhamento dessa estrutura com as unidades regionais certamente impulsionaria outras áreas, por exemplo, a de genômica e sua importância para a vigilância genômica-epidemiológica, o que ficou claro com a Covid-19, ao precisarmos detectar rapidamente as variantes do vírus que estão aparecendo ou circulando”.  

Para o pesquisador, a fragilidade ambiental do planeta não permite otimismo frente ao futuro e às ameaças em saúde. “Temos que estar preparados em vigilância genômica e epidemiológica. A Fiocruz poderia ser, inclusive, a voz do Ministério da Saúde e contribuir para a construção de políticas públicas específicas”. 

Goldenberg também destacou a área de Inteligência Artificial como alvo de ampla utilização na Saúde. “A inteligência artificial permeia, hoje, várias áreas de conhecimento: a própria área de dados, os processos de automação, análise, desenvolvimento de fármacos e de modelização”, pontuou, chamando atenção, também, para a importância de se estabelecerem mecanismos de fomento e parcerias para atração de jovens pesquisadores. Ele se referiu à “triste realidade da evasão de cérebros que estamos sofrendo hoje” e o que isso representa de perda para o futuro da nação. 

Para o pesquisador, é preciso conhecer e avaliar melhor o potencial da Fiocruz como criadora de ferramentas e políticas públicas em saúde, e fortalecer as estratégias de multidisciplinaridade e trabalho em rede incorporando novas ferramentas como as promovidas pela ciência de dados e a inteligência artificial. “Não podemos ficar reféns de importação de insumos para a saúde como ficamos na pandemia da Covid-19. Esse quadro não mudará tão cedo e está diretamente relacionado à capacidade de produzir ciência, tecnologia e inovação”. 

Ao final das exposições, Gadelha observou que as falas articularam o SUS com uma visão mais ampla, dando-se voz a diversos saberes. “Ninguém falou só do SUS, dando-se voz a diversos saberes. Este talvez seja o congresso mais aberto que a Fiocruz já fez”, considerou, lembrando o sanitarista Sergio Arouca ao tratar da “Reforma Sanitária para além do umbigo do SUS”, ou seja, tomando-se o SUS como dimensão central, mas levando-se em conta outras dimensões, para além da organização do sistema. 

Naomar apontou três cenários para um pós-pandemia imediato, do ponto de vista da saúde. “O primeiro é um cenário desejável, possível, mas precisará ter muita luta, que é o de se reconquistar a democracia e recuperar um espaço de convivência que nos traga avanços do ponto de vista da sociedade e não retrocessos”, pontuou.  O segundo cenário, que chamou de realista e que, segundo ele, já se anuncia, é o de “endemização caótica da pandemia”. E o terceiro e “mais preocupante” é o da “endemização socialmente seletiva”, como definiu, relacionada a uma “incompetência das medidas de controle e à própria estratégia passiva de se lidar com a pandemia, de mitigação de danos, e não uma estratégia ativa, de se buscar a inteligência epidemiológica para o controle da crise”.

Naomar indagou se, no momento em que os setores com visibilidade social, poderio econômico e representatividade política na sociedade brasileira tiverem clareza de sua proteção, haverá energia para se estender de modo equitativo a toda a população uma superação da pandemia. “Tendo a ser cético. Estamos ainda em um crescimento intermediário de cobertura vacinal, e é possível que se tenha como estratégia a imunidade dita de rebanho para o povo e a proteção seletiva para os outros segmentos”. Para ele, as forças na direção da privatização do SUS e do desmonte dos sistemas de proteção social, e um cenário de restrição das liberdades compõem um cenário indesejável, mas plausível. 

Em suas palavras finais, a presidente da Fiocruz observou que o seminário abordou, ao pensar o futuro da saúde, de questões transversais a todas as áreas do conhecimento e também questões transversais a todas as áreas de atuação da instituição, tais como pesquisa, atenção de qualidade, educação e vigilância. “Esse conjunto de questões nos faz ser uma instituição do SUS e ser, também, um ator da saúde global”, considerou Nísia. “E o que está presente nesta sessão é que não é mais possível separar a discussão da ciência, tecnologia e inovação da discussão sobre o Sistema Único de Saúde”. E reafirmou: “É muito importante, neste momento, valorizarmos as potencialidades. Tendemos a olhar mais o que há de negativo em cada contexto, para aquilo que nos falta. Mas é importante pensarmos nas potências, nos movimentos que muitas vezes não são visíveis. E nada como um congresso interno para colocar em movimento ideias tão instigantes quanto as que foram trazidas aqui”. 

Leia, em breve, sobre o terceiro seminário preparatório do IX Congresso Interno da Fiocruz, com o tema Desafios da mudança climática e do ambiente e a Fiocruz do futuro, realizado em 20/10/2021.

Redação

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