Retórica, pragmatismo e a venda da Embraer, por Antônio Cruz Jr. e Rafael Dubeux

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Retórica, pragmatismo e a venda da Embraer

por Antônio Cruz Júnior e Rafael Dubeux

A Embraer é o maior e mais bem-sucedido esforço nacional de estabelecer uma parceria saudável e competitiva entre empresa, academia e Estado. Resultado de anos de investimentos públicos e privados, a empresa é a verdadeira joia da coroa do empreendedorismo brasileiro, líder no mercado em que atua, com grande número de fornecedores nacionais e engajada em atividades tecnológicas de ponta. Sua venda a preço vil para a gigante americana Boeing só pode ser qualificada como uma capitulação: é conformar-se que só cabe ao país ser produtor de produtos primários sem agregação de valor.

Investimento estrangeiro direto (IED) é frequentemente positivo para o país por trazer tecnologia e know how que auxiliam no aumento da produtividade e ampliam a concorrência no mercado doméstico. Mas “frequentemente” não é o mesmo que “sempre”. Por isso, praticamente todos os países relevantes instituíram mecanismos de regulação do IED em setores estratégicos para a defesa nacional e para a proteção de tecnologias sensíveis.

Nos EUA, por exemplo, há uma comissão vinculada ao Departamento do Tesouro, que analisa a conveniência  dessas operações, a CFIUS (Committee on Foreign Investment in the United States). A Alemanha também dispõe de poderes para bloquear investimentos estrangeiros que ultrapassem 10% do capital de empresa local. O Reino Unido tem, igualmente, regras para verificação de investimentos estrangeiros diretos de acordo com a relevância do mercado e segundo seus impactos em tecnologias sensíveis. A União Europeia está debatendo a fixação de uma regulação equivalente para o conjunto do mercado comum da região.

No caso brasileiro, prevalece uma visão para lá de ingênua sobre o papel do IED. Todo investimento estrangeiro é visto como orgulho nacional, sinal de confiança no país. Persio Arida, por exemplo, um de nossos destacados economistas, já declarou recentemente que “todo investimento estrangeiro é bem-vindo”.

No caso da Embraer, embora não tenhamos uma regulação abrangente sobre IED, o governo brasileiro dispõe de ações especiais (golden share) que conferem poderes de veto a esse tipo de operação. Esses poderes singulares foram conferidos durante o bem-sucedido processo de privatização da empresa. Assim, ainda que não haja essa regulação abrangente, existe nesse caso concreto uma ferramenta disponível para barrar a operação.

A Embraer é talvez a mais singular empresa de tecnologia brasileira. Resultado de anos de esforços conjugados públicos e privados, desde a formação do CTA e do ITA, suas primeiras aeronaves desafiaram o senso comum de que não tínhamos chance no setor, passando pela privatização e pelos ganhos de competitividade da empresa. É o mais exitoso exemplo de parcerias público-privadas, com o Estado assumindo os maiores riscos nas etapas iniciais do processo e na sequência permitindo que o setor privado assumisse as rédeas e acelerasse os passos para conferir competitividade ao negócio, embora sempre contando com o apoio público por meio de formação de mão-de-obra qualificada, pesquisa e compras públicas.

A proposta apresentada separaria a Embraer em duas: uma nova empresa, controlada pela Boeing com 80% do capital, cuidaria do setor de jatos comerciais. A antiga Embraer continuaria existindo apenas com a divisão de defesa e de jatos executivos, que têm participação bem menor nos resultados da companhia.

Deixar apenas o setor de defesa na “velha Embraer” é praticamente o mesmo que acabar com a empresa. O setor rentável é o de jatos comerciais, responsável por 60% do faturamento e parcela ainda maior de seus lucros. As atividades de Defesa e de jatos executivos representam uma parcela menor das vendas e da rentabilidade e praticamente só são viáveis pela sinergia entre os segmentos. A separação em uma nova empresa controlada pela Boeing e a velha empresa com mercado mais restrito decerto inviabilizará seu modelo de negócios e, especialmente, o desenvolvimento tecnológico local, que a tornou um orgulho nacional.

Argumenta-se que a venda seria inevitável porque a canadense Bombardier, principal concorrente da Embraer em jatos regionais, teria sido comprada pela Airbus, a gigante europeia. A empresa brasileira não teria alternativa senão se juntar à outra gigante do setor, a estadunidense Boeing. Mais um mito a obscurecer o debate. Houve de fato uma parceria da canadense com a europeia, mas a parceria é limitada a uma nova linha de jatos. A Bombardier não deixou de existir: continua sendo uma empresa canadense, sediada em Montreal. A parceria firmada com a Airbus foi feita em conjunto com o próprio governo de Quebec, que é um dos sócios do empreendimento. No nosso caso, se fôssemos seguir o exemplo canadense, seria factível discutir uma parceria com a Boeing, o que é bem diferente de vender o controle da parte rentável e competitiva da empresa.

Situação semelhante à venda da Embraer ocorreu alguns anos atrás com as empresas brasileiras Alellyx e CanaVialis, focadas em pesquisa na área de biotecnologia, engolidas por outra gigante estadunidense. Depois de adquiridas por preços baixíssimos, seus parques de pesquisa foram praticamente desativados e seus pesquisadores desligados. As compras atingiram o propósito: evitou concorrentes potenciais e bloqueou nossa capacidade de desenvolvimento tecnológico próprio. Quando da aquisição dessas empresas de biotecnologia, o governo não dispunha de golden share para evitar a venda das empresas.

No caso da Embraer, embora não tenhamos uma legislação abrangente para avaliar a sensibilidade das tecnologias envolvidas em aquisições estrangeiras, dispomos da golden share, que, na prática, permite os mesmos resultados. A pergunta inevitável fica no ar: os EUA admitiram que a Boeing fosse vendida para uma empresa chinesa, ou mesmo brasileira? Aliás, não fica no ar: a resposta é evidente.

O governo que ora assume o comando do país tem uma oportunidade única de mostrar que nacionalismo não se limita a ostentar as cores nacionais e uma retórica contundente, mas sim a efetivamente defender os interesses do país, tal qual o fazem outras nações, e, neste caso, reconsiderar o anúncio feito e vetar a venda da Embraer para a Boeing nos moldes propostos. Além disso, o governo poderia propor uma legislação que institua mecanismos de avaliação do investimento estrangeiro direto similar aos que existem nos Estados Unidos e na União Europeia.

Antônio Cruz Júnior, especialista em políticas públicas e gestão governamental

Rafael Dubeux, doutor em Relações Internacionais pela UnB

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

10 Comentários

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  1. A CHAVE DE TUDO…

    “…As compras atingiram o propósito: evitou concorrentes potenciais e bloqueou nossa capacidade de desenvolvimento tecnológico próprio. Quando da aquisição dessas empresas de biotecnologia, o governo não dispunha de golden share para evitar a venda das empresas…” Vendemos uma parcela significativa do Mercado, que outras Economias e Nações não querem como sócias e muito menos concorrentes. Nossa discussões são risíveis e ainda as colocamos na balança da ideologia tosca, tanto de direita quanto de esquerda. O Estado Brasileiro continuará a produzir esqueletos, menosprezando em pleno milênio, a importância de Empresas, Tecnologia, Conhecimento e Empregos. Enquanto este Estado Brasileiro continuar sustentando suas Elites, desta forma com enorme retorno financeiro, não permitirá que a Sociedade Civil tenha qualquer projeto de dedesenvolvimento. É nossa história em quase 9 décadas, exportando Bens Primários da Riqueza Natural, consignados ao Estado e mantendo sua Elite. Para esta estrutura de poder, que perdura, pouco importa a Empresa ser nacional ou estrangeira.   

  2. duvidinhas

    Quanto vale a carteira de encomendas da EMBRAER?

    Quanto vale o desenvolvimento do projeto e construção do cargueiro KC 390 e de todos os outros projetos?

    Quanto custaria produzir outra empresa brasileira similar (100% brasileira)?

    Quanto a EMBRAER e seus fornecedores geram de empregos, impostos e riqueza no Brasil?

    Quanto vale a inteligência da EMBRAER produzida no ITA? Os formandos futuros trabalharão com projetos de…travesseiros?

    Qual é o plano e quanto custará dar outro emprego aos trabalhadores fatalmente demitidos?

    Quanto perderemos de prestígio internacional quando tirarem nossa bandeirinha de 3ª fabrica de aviões do mundo?

    ???………………………

    Não. Não reclame comigo. Eu votei no outro. E não. Não diga que eu não avisei!

  3. Quem dá a mínima? O Brasil

    Quem dá a mínima? O Brasil não precisa ter tecnologia, só precisa produzir soja e milho.

    Esse “país” sempre vai ser uma colônia de quinta categoria.

  4. Vocês sabem quando a Sukhoi,

    Vocês sabem quando a Sukhoi, a MIG ou a Tupolev vão ser controladas pelos EUA? NUNCA! Sabe por que? Por que os Russos são patriotas e nacionalistas, bem diferente dos militares brasileiros que são entreguistas.Como diria o embaixador brasileiro em Washinghton, Juracy Magalhães, durante o governo do ditador Castelo Branco: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Pelo visto nada mudou na cabeça dos militares brasileiros desde a ditadura.

  5. A CENSURA NADA ESCONDE…

    Ela apenas revela. Revela o país que criamos em 88 anos de Fascismo de Esquerda replicados por mais 40 anos de farsante Constituição Cidadã. Alias, não apenas revela. Ela grita  

  6. A Embraer seria estratégica

    A Embraer seria estratégica para a Boeing, no momento em que a concorrente Airbus enfrenta turbulências com sua mega-aeronave A380, cujas encomendas estão sendo canceladas em massa? É só uma reflexão; não pretendo incorrer em cultura da Internet.

  7. A taça não é nossa

    Parabéns pelo artigo, de longe foi um dos mais esclarecedores contrapondo a venda.

    Só queria salientar que diferente de nacionalistas iludidos como uma grande maioria que estabelece a oposição a venda, a Embraer desde 94 não é do Brasil, é uma empresa de capital aberto (ao qual adiquiri ação na Bolsa) e torcia por uma decisão favorável, especulando o lucro. 

    Entendo a situação da golden, mas de certa forma o governo investe (dinheiro público, ok) numa empresa ao qual não retorna o seu investimento. Tudo bem, após a reportagem ficou claro a estratégia, porém, sejamos realistas, a Embraer e a Bombardier como um tiro certo, investiram num setor que não interessava as grandes empresas aéreas. Vocês realmente acham que eles não possuem estrutura para desenvolver algo semelhante ou superior ao que as duas fazem?

    O mercado pode ser favorável para a Embraer, caso não confirmasse a parceria, talvez uns 10 ou 15 anos, mas praticamente seria engolida pela concorrência.

    Outro ponto, é a preocupação com empregos e afins, gente, mão de obra qualificada não fica sem emprego, o mesmo prazo de uma futura disruptura da Embraer num futuro próximo, foi dado para que se permanecesse a empresa no Brasil.

    O investimento bélico vai permanecer, e se manterá mais ativo com essa proximidade, só não podemos, deixar de investir na educação e nas pesquisas científicas, isso sim, será primordial para a soberania do país.

  8. Não admito que o vizinho venda a sua mansão

    Tenho uma opinião formada e nem me dei ao trabalho de ler o post por inteiro. Li alguns comentários e acho muito estranho ficar questionando a “perda” da Embraer que há muito foi privatizada (25 anos) e pertence majoritariamente  a fundos  internacionais. Falar em preço vil, por que? Isso é problema dos acionistas. Brasileiro comum não está perdendo nada. Uma arrogância sem fim; os contrariados se julgam donos da empresa dos outros. A Embraer ficando por aqui já está de bom tamanho. As ações especiais (golden share) garantem isso. Sem a fusão, não compete com Airbus/Bombardier e quebra.

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