Mesmo sem defesa, jovem está preso há 3 meses e é condenado a 9 anos de prisão por roubo

Provas de que Diego é inocente foram enviadas à Defensoria Pública, mas o material não foi usado

Diego, jovem preso injustamente
Provas de que Diego é inocente foram enviadas à Defensoria Pública, mas o material não foi usado. Sem defesa, Diego não teve direito a testemunhas e foi condenado sem que ninguém se manifestasse em seu favor. Foto: Arquivo pessoal

Por Marcelo Oliveira
Especial para o GGN

O entregador de pizzas Diego Gomes da Silva, 22 anos, está preso desde 24 de junho, mas somente no dia 14 de outubro teve acesso a um defensor público. Neste mesmo dia foi julgado e condenado a 9 anos e 26 dias de prisão em regime fechado, acusado do roubo de um telefone celular, sem que tivesse sequer apresentado sua defesa. 

A condenação de um réu que não pôde se defender aconteceu no maior fórum criminal do Brasil, o Fórum da Barra Funda, na Capital de São Paulo. O autor da sentença é o juiz José Fabiano Camboim de Lima, da 14ª Vara Criminal de São Paulo. 

E não se trata apenas de uma questão técnica. A mãe de Diego, a atendente Sheila Aparecida Gomes, 38, que trabalha na mesma pizzaria que o filho, enviou para a Defensoria Pública provas de que o filho é inocente, mas o material não foi usado. 

Sem defesa, Diego não teve direito a arrolar testemunhas e foi condenado sem que ninguém se manifestasse em seu favor. Esta decisão não aconteceu em um país autocrático. Aconteceu no Brasil, em tese uma democracia e que prevê no artigo 5 da Constituição que “aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. 

Foram enviadas fotos que mostravam que no dia e horário do crime Diego e a namorada dele na época acompanhavam Sheila durante a compra de material de construção para a reforma da casa onde moram no bairro Chácara Bandeirante, a 30 km do centro de São Paulo. A nota fiscal também foi enviada, bem como a qualificação da ex-namorada de Diego, que se dispôs a testemunhar. 

Não bastasse o álibi, desde quando Diego foi detido pela PM para averiguação, no dia 29 de março, na esquina do cartório do bairro da Capela do Socorro, onde se encontrava para registrar o filho Pietro, nascido em fevereiro, ele informou quem havia lhe vendido o celular. 

“Ele trocou uma moto antiga que não usava mais e que precisava de reparos pelo celular. Eu estava na hora”, conta Sheila. O aparelho foi vendido por um menor de idade que identificaremos como William nesta reportagem. O aparelho estava formatado — sem conteúdo — e funcionava normalmente. O rapaz que vendeu o celular disse que o celular era do pai dele, que limpou os dados do aparelho antes da venda. 

O roubo de que Diego é acusado ocorreu em 18 de dezembro de 2020 no bairro em que ele mora. Também conhecido como Chácara Flórida, a Chácara Bandeirante é uma área de antigas chácaras próximas a áreas de manancial, de proteção permanente, nas imediações da represa de Guarapiranga, perto do Jardim Ângela. Hoje, as chácaras foram invadidas e loteadas e os terrenos divididos por ruas de terra mal iluminadas e mal sinalizadas. Várias das ruas do bairro tem mais de duas placas, nomes diferentes e mais de um CEP indicado, o que gera confusão para entregadores e oportunidades para criminosos, transformando o bairro em alvo de ladrões de cargas e seus moradores, pobres, automaticamente considerados suspeitos sem direito à cidadania.

Um furgão contratado pela Souza Cruz, ocupado por um motorista e um ajudante passou pelo bairro e foi abordado por um rapaz de arma em punho, que mandou o motorista parar e roubou o celular que estava no painel do veículo para indicar o caminho. Após pegar o celular, o ladrão perguntou qual a carga e a vítima informou que eram cigarros. Mais dois homens teriam surgido de um matagal e levado a carga, avaliada em R$ 16,5 mil. 

Nenhuma investigação importante foi realizada nem sobre este, nem sobre outros roubos de carga no bairro até que Diego — um rapaz negro, tatuado e subempregado — foi parado pela PM perto do cartório com um volume na cintura: o celular e um maço de cigarros. A polícia pesquisou o aparelho e constava queixa de roubo. 

Diego foi levado para a delegacia do bairro e contou que havia comprado o aparelho. Ele só não foi mantido preso, pois o motorista do caminhão não foi localizado. Entretanto, sua detenção com um aparelho de celular roubado deu início a uma investigação sobre o roubo, mais de 3 meses depois do crime. 

O motorista do caminhão foi chamado à delegacia do bairro do Socorro e lá esteve em 20 de maio. Segundo o inquérito policial, o homem reconheceu Diego por meio da foto do RG do jovem, tirada quando ele tinha 14 anos, mostrada num computador ao lado das fotos de 3 rapazes não identificados. 

A foto acima é uma reprodução do processo. É o jogo de fotos que foi mostrado à vítima. Diego é o número 1. Na foto, ele tem 14 anos.

Com base neste reconhecimento precário, a Polícia Civil requereu, o Ministério Pùblico deu parecer favorável e a juíza Tania da Silva Amorim Fiuza, do Departamento de Inquéritos Policiais, decretou a prisão temporária de Diego por 30 dias. A prisão foi cumprida em 24 de junho. 

A prisão de Diego ocorreu 4 dias antes dele ser julgado e absolvido por outro roubo. Em 11 de janeiro deste ano, Diego e mais três jovens foram presos acusados de outro roubo de carga na Chácara Bandeirantes. Três deles haviam sido presos quando dormiam na casa em que Diego e a mãe vivem após uma noite de trabalho na pizzaria. 

Este é Diego atualmente. A foto é de março de 2021, no dia em que conheceu o filho Pietro. Foto: Arquivo pessoal

Sheila e as outras mães, com apoio da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, um grupo de defensores de direitos humanos que luta também contra o encarceramento em massa, denunciaram as inúmeras falhas no caso. Reportagem de minha autoria que revelava a existência de um vídeo em que um rapaz afirmava ter participado do roubo da carga foi usada pela defesa de um dos réus e Diego e os amigos receberam a liberdade provisória em 15 de março. 

Apesar de uma ordem judicial ter ordenado ao delegado responsável que Diego participasse da audiência, a decisão não foi cumprida. Mesmo assim, os três jovens foram absolvidos. A vítima do roubo de janeiro — que reconheceu os acusados na delegacia, num procedimento realizado de forma ilegal (os quatro acusados foram mostrados juntos à vítima, o que fere o Código de Processo Penal e a jurisprudência mais recente do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto) — não os reconheceu em juízo. 

Ele disse na audiência que não seria possível ele reconhecer qualquer dos acusados, uma vez que todos estavam encapuzados e que eles usavam roupas muito diferentes dos ladrões que o haviam roubado. Indagado pelo advogado de um dos réus se havia sido induzido pela polícia, a vítima não disse nem sim, nem não. “Foi mais ou menos isso”, respondeu. Diego e os amigos foram então absolvidos, mas o rapaz não soube naquele dia, pois era mantido praticamente incomunicável na delegacia. “Eu só o vi uma vez enquanto ele esteve na delegacia”, contou Sheila. 

Desde a nova prisão de Diego, mesmo com a ajuda da Rede e outros militantes dos Direitos Humanos, Sheyla teve todo o tempo muita dificuldade para lidar com o atendimento da Defensoria Pública. Foram quase 15 dias até conseguir falar com um defensor, pois primeiro houve a dificuldade para se descobrir o número do inquérito, que não foi franqueado pela polícia à família, até que um advogado — de favor — foi até a delegacia e fotografou a capa e algumas páginas do caderno investigativo. 

Diego e a ex-namorada no dia em que o crime aconteceu (tarde de 18 de dezembro de 2020). A foto foi postada em um story da rede social Facebook e serve de álibi.

Por conta da pandemia de covid-19, a Defensoria praticamente suspendeu o atendimento pessoal desde março de 2020 e orienta pessoas humildes e com pouca escolaridade, como Sheila, a usar o atendimento online do órgão. Com dificuldade, Sheila falou com atendentes e um defensor e no dia 8 de julho o defensor pediu à Justiça acesso ao inquérito policial. 

No dia 7 de julho, o motorista da Fiorino do roubo de janeiro foi novamente à delegacia da Capela do Socorro para o reconhecimento pessoal de Diego. O rapaz contou à mãe que foi colocado ao lado de outros homens mais velhos e bem diferentes dele, alguns policiais. Um policial apontou para Diego e disse à vítima que ele era “o rapaz do celular”. “Então foi ele mesmo”, respondeu a vítima, “reconhecendo” o rapaz preso. 

Com base nesse reconhecimento, a Polícia Civil concluiu o inquérito e pediu a prisão preventiva de Diego em 19 de julho. No dia 20, o MP deu parecer favorável. No mesmo dia, a juíza decretou a preventiva. No dia 22 de julho, o MP denunciou Diego por roubo qualificado (à mão armada, praticado por duas ou mais pessoas e em contexto de pandemia). Sheila não foi ouvida, nem a ex-namorada. William, que vendeu o celular para Diego, nunca foi procurado pela polícia. 

Entre 8 de julho e 14 de outubro a Defensoria não atuou mais no caso. O defensor que pediu os papeis no dia 8 de julho atua somente em inquéritos policiais. Quando a denúncia foi recebida e iniciada formalmente a ação penal ele perdeu a competência de atuar no caso, mas o substituto do defensor nunca foi nomeado. 

Até 8 de outubro, o pedido da defensoria, de uma página, havia sido a única manifestação em defesa de Diego em todo o processo. Seis dias depois, Diego foi julgado e condenado sem ter sido citado no Centro de Detenção Provisória de Diadema e apesar de vários contatos de sua mãe com a Defensoria, nada por ela encaminhado foi utilizado. O cúmulo da negligência ocorreu na semana que antecedeu o julgamento. Sheila insistiu pelo atendimento online que queria falar com um defensor. O atendimento foi agendado para dia 14, às 15h, mesmo horário do julgamento do rapaz. 

A advogada Fernanda Peron Geraldini, que atua no apoio jurídico da Rede de Proteção, teve acesso ao processo e à sentença e ficou impressionada. “Houve negligência do Ministério Público e do Judiciário, mas quem jamais poderia deixar isso acontecer era a Defensoria. O réu não teve a menor chance de produzir provas em sua defesa, mesmo com diversas tentativas de sua mãe. Mesmo com o excesso de trabalho dos defensores públicos, esse tipo de negligência ultrapassa qualquer limite aceitável”, afirmou. 

Dias depois, ela assumiu a defesa de Diego gratuitamente e protocolou um habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo nesta quarta-feira (20), pedindo liminarmente a liberdade provisória do réu e a anulação de todo o processo até que Diego seja citado para que possa se defender. A liminar foi negada pela 11ª Câmara Criminal do TJ nesta quinta (21) e a advogada irá ao STJ. Antes, no dia 15 de outubro, a Defensoria apelou da sentença, mas uma apelação leva, em média, um ano para ser apreciada pelo TJ. O HC é um remédio jurídico mais rápido.

Depois que a advogada Fernanda assumiu o caso de seu filho, Sheila ainda buscou informações à Defensoria sobre a documentação encaminhada ao órgão para embasar a defesa de seu filho. Lhe informaram que havia sido encontrada uma declaração de trabalho assinada pelos donos da pizzaria e uma certidão de nascimento. As fotos e a nota fiscal dos materiais comprados em 18 de dezembro de 2020 — dia do crime — não foram localizados. A atendente da defensoria se recusou a responder o que houve ao constatar que Fernanda havia assumido o caso, alegando que a defesa de Diego não é mais responsabilidade da Defensoria. 

*Marcelo Oliveira é jornalista há 28 anos. Dividiu a carreira entre reportagem e assessoria de imprensa. Trabalhou como repórter na Folha de S. Paulo, Agora SP e no UOL. Foi assessor de comunicação do MPF em SP e da Comissão Nacional da Verdade. Está escrevendo o livro “Liberdades Roubadas”, sobre prisões ilegais em São Paulo

Redação

8 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Essa é a “democracia brasileira”: Dinheiro e poder para os ricos, armas e poder de matar para os seus capitães do mato; Polícia, prisão, fome e morte para os pretos e pobres e índios. Ah! Mas nós vivemos sob instituições democráticas sólidas, não é mesmo? Não é isso que se repete comumente na imprensa, inclusive em alguns veículos de imprensa ditos progressistas? Talvez possa falar isso quem “acredita” nas “instituições”, isto é, quem vive sob o privilégio das mesmas ou quem ao menos vive sem o medo de ser perseguido por elas, obviamente esses não são pretos e pobres e índios.

  2. “…condenado a 9 anos de prisão por roubo sem ter apresentado defesa,.”…Allan dos Santos tem prisão preventiva determinada por Alexandre de Moraes…”…Se PGR arquivar indiciamento, Senadores da CPI pretendem pedir impeachment de Aras…” OAB se cala. ABI se cala. AMB se cala. Imprensa se cala contra tais Arbitrariedades Fascistas, que foram criticadas até por Glenn Greenwald em CartaCapital. Não está sendo fácil para o Povo Brasileiro retomar o Poder após 91 anos de Elites do Estado Ditatorial Caudilhista Absolutista Assassino Esquerdopata Fascista. Chateaubriand, DIP, Filinto Muller fizeram escola na Censura e na Barbárie sob o comando do Ditador Assassino Fascista Getulio Vargas. Gigantesca Batalha para enterrar quase 1 século de Cleptocracia.

  3. Liberdade roubada pelo juiz do caso .
    A pena para o funcionário público relapso do judiciário, que é pago regiamente, em dia, pelo povão que êle condena, deveria ser cana, junto com os puliciais, na cela do Tonhão pé de mesa.

  4. Ué. Agora estão achando ruim a insegurança jurídica criada pelo STF. Mas os esquerdistas batem palma para os processos lá. Onde os advogados sequer tem direito de consultar o processo. Isso que é o que acontece quando o próprio judiciário não respeita as leis. E isso começou lá em cima!. E a tendência é só piorar!.

  5. O Brasil (deve ser grafado com minúscula mesmo) existe como nação, sob um regime não democrático mas eleitoralista e tecnocrático. Democracia aqui é uma piada para os pobres e um diletantismo para os intelectuais.

  6. Não estou reconhecendo a polícia. Todo esse trabalho por causa de um celular? Não acredito. Todos os dias tem denúncias graves aos montes e a polícia nem se mexe.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador