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130 anos da Rerum Novarum: A doutrina social católica e o direito do trabalho no Brasil, por Nasser Ahmad Allan

130 anos da Rerum Novarum: A doutrina social católica e o direito do trabalho no Brasil

por Nasser Ahmad Allan

É muito comum serem encontradas, nos livros brasileiros de Direito do Trabalho, alusões à doutrina social da Igreja Católica como entre as principais, senão a principal, influências neste ramo do direito, sobretudo, inspirando a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943.

Se considerado o período de formação do Direito do Trabalho e Direito Sindical no país ao referir-se a doutrina social católica está a se tratar de três encíclicas papais: RerumNovarum, do Papa Leão XIII, de 1891, QuadragesimoAnno, de 1931, e DiviniRedemptoris, de 1937, ambas de Pio XI.

Em 15 de maio de 1891, a Igreja Católica Apostólica Romana divulgava a encíclica RerumNovarum, das coisas novas, em latim. O documento papal representava importante guinada da Santa Sé sobre a “questão social”, pois rompia com uma política passiva e silenciosa adotada pela alta hierarquia da Igreja Católica no tratamento da desmedida exploração econômica a que se sujeitava a classe trabalhadora.

O liberalismo econômico, então em voga, produzira uma sociedade extremamente desigual, onde a miséria e a fome do operariado eram contrapostas à riqueza e à prosperidade dos proprietários dos meios de produção, não tardando a surgirem movimentos insurgentes com críticas anticapitalistas e desejos de transformação social.

A relutância estatal em interferir nas relações de trabalho, regulamentando-as, a fim de minorar a exploração ao estabelecer diretrizes legais basilares, como limites à jornada de trabalho e salário mínimo, fomentava o recrudescimento dos movimentos de trabalhadores que, por seus sindicatos, organizavam-se cada vez mais, conseguindo eleger representantes nos parlamentos de alguns países.

O antagonismo entre capital e trabalho causava fissuras na tecitura social induzindo a manifestação da Santa Sé sobre os problemas envoltos na questão social. A fim de legitimar a intervenção no debate e recorrendo a um argumento de autoridade, o Vaticano apresentava o tema como consequência da crise moral da sociedade burguesa, resultado do egoísmo e individualismo acentuado do liberalismo, de um lado, mas também da propagação do socialismo, de outro.

Para a Santa Sé a sociedade burguesa representava a derrocada da humanidade prestando-se a impulsionar algo ainda pior, o socialismo e o comunismo. Assim, a Igreja Católica deveria restabelecer a condição de centro da humanidade e, para tanto, apresentava inflexão não no sentido de enfrentar os desafios futuros, mas a partir da perspectiva de retomar valores e modelos do passado. A solução repousaria, portanto, na restauração da moral e dos valores cristãos, relegados a plano inferior pela ascensão da Modernidade e do ideário liberal, que profanaram, a antes sacra, sociedade. Seria factível, com isso, restabelecer princípios medievais e a vida dos estamentos em plena harmonia. Em suma, mostrava-se urgente recristianizar a sociedade.

A necessária colaboração entre as classes sociais, portanto, constituiu-se em um dos principais pilares de sustentação da encíclica Rerum Novarum. Os pobres precisavam se conformar com sua condição econômica e social que decorreria da vontade de Deus, pois a desigualdade se originaria das diferentes habilidades e qualidades obtidas com o nascimento, descartando-a como fruto de uma sociedade injusta.

Além da naturalização da desigualdade, a Santa Sé preocupou-se em defender a propriedade privada opondo-se, frontalmente, à proposta de sua coletivização formulada por sindicatos e partidos socialistas. Neste sentido, a organização dos operários em associações profissionais era percebida como possível, se essas entidades fossem confessionais, isto é, cristãs, e ainda assim, cabendo ao Estado reprimir aquelas que se filiassem às doutrinas sectárias ou exóticas, como costumeiramente referia-se ao socialismo, comunismo e anarquismo. É com essa perspectiva que a encíclica estipulou alguns deveres dos “patrões”, destacando entre eles, “zelar para que o operário não se entregue ao socialismo”, nos dizeres de Leão XIII.

Em outra vertente, a moral cristã provocaria nos ricos os sentimentos de caridade e justiça em relação aos trabalhadores o que implicaria conceder um salário digno e condições de trabalho mais adequadas. Desse modo, patrões e operários assumiriam os seus lugares no corpo social ao compreenderem a necessidade recíproca de ambos, passando a viver em harmonia, sem maiores sobressaltos nas relações sociais de produção.

A encíclica de Leão XIII também trouxe importante inflexão concernente à ética católica sobre o trabalho. Na obra de São Tomás de Aquino o trabalho era compreendido como moralmente indiferente, sendo necessário para quem dele sobrevivia. Com isso, preserva-se os interesses de uma classe social privilegiada, a aristocracia que, por deter muitas posses, não necessitava trabalhar.

Na Rerum Novarum o ato de trabalhar é revestido de um caráter ambivalente, pois, representado, ao mesmo tempo, como castigo e salvação. O sofrimento e a dor do trabalho são justificados a partir do texto bíblico, em especial na passagem que narra a expulsão de Adão e Eva do Éden. Assim, assentava-se que as péssimas condições laborais seriam consequências do pecado original e da queda do homem do paraíso. De outra parte, foram inúmerosos trechos extraídos do Novo Testamento com a intenção de demonstrar Jesus Cristo como um operário, um trabalhador.

Nessa perspectiva, o trabalho apesar de causar dor, porque castigo, também motivaria a expiação e a santificação de quem trabalha, passando a ser encarado como algo absolutamente essencial e natural à sociedade capitalista e, portanto, constituindo-se em obrigação de todo cristão. Fato bem ilustrado nas palavras de Pio XI na encíclica Quadragesimo Anno, quando afirmou que “o homem nasceu para trabalhar como a ave para voar”.

A estrutura hierárquica da Igreja Católica contribuiu muito para permitir propagar tais valores e ideias, em especial, a partir das Cartas Pastorais dirigidas pelos Bispos aos fiéis e clérigos das respectivas dioceses, com leitura mandatória em missas, mosteiros, conventos, etc. 

Com a proposta de recristianizar a sociedade, podendo conduzir os valores cristãos aos espaços profanos, sem restringi-los às missas e igrejas, o Papa Pio XI fundou um movimento, difundido a partir do Vaticano, porém, destinado a organizar os leigos católicos a agirem como se fossem um “exército de Cristo”, na expressão papal.

A Ação Católica Brasileira – como ficou conhecido esse movimento – fomentou a criação e desenvolvimento de importantes organizações que exerceram alguma influência na sociedade civil brasileira da primeira metade do século XX. Entidades como os círculos operários, juventude operária católica, juventude universitária católica, intelectuais católicos, certamente, contribuíram para formar e espraiar um pensamento social elaborado a partir da doutrina da Igreja.

Com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder houve um estreitamento, a partir da convergência de interesses, entre Igreja Católica e Estado. Tal relação não se ateve à apropriação da imagem e de símbolos da Igreja Católica, mas também resultou no recrutamento de militantes dos movimentos católicos. O aliciamento, principalmente, de intelectuais católicos para ocupar cargos na burocracia estatal também alcançou o alto escalão do Governo Vargas, em especial, o Ministério do Trabalho, com as nomeações como ministros de Waldemar Falcão e Alexandre Marcondes Filho, que contrataram inúmeros técnicos extraídos dos movimentos católicos, como Oliveira Viana, Luiz Augusto do Rego Monteiro, Arnaldo Sussekind, entre outros nomes importantes no processo de elaboração da CLT.

Não há de restar dúvidas, portanto, que a doutrina social da Igreja Católica influenciou na formação do Direito do Trabalho e do Direito Sindical brasileiros, deixando salientes noções como o respeito ao princípio da autoridade que contaminou o conceito de subordinação do empregado ao empregador, compreendendo-a como obrigação moral, quase similar a dos filhos em relação aos pais, como defendido em alguns artigos jurídicos da época, de onde deriva também o dever de obediência.

Ou, ainda, evidencia-se o princípio da colaboração entre as classes sociais que produz a obsessão conciliatória que impregna não só direito material do trabalho, mas também o direito processual e sindical, ao mesmo tempo em que se detrata o conflito e repele-se o exercício de autotutela com a greve.

Se for verdade que nem tudo sobreviveu ao tempo, também não deixa de o ser o fato de ainda restarem – na pior das hipóteses – muitos vestígios de ideias e valores introduzidos pela doutrina social católica daquela época, que buscou produzir um trabalhador cordato, obediente, resignado e uma classe trabalhadora conformada, quando muito, organizada em sindicatos dependentes do Estado.

Nasser Ahmad Allan – Doutor em Direito pela UFPR. Autor dos livros Direito do Trabalho e Corporativismo: análise das relações coletivas de trabalho (1889-1945) (Juruá, 2010) e Cultura Jurídica Trabalhista Brasileira: doutrina social católica e anticomunismo (1910-1945), (LTr, 2015). Advogado trabalhista em Curitiba, sócio de Gonçalves, Auache, Salvador, Allan & Mendonça Advocacia.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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