Destaque Secundário

A Casa da Morte, os crimes contra a humanidade e a prescrição penal, por Rômulo Moreira

A história da “Casa da Morte” não teria sido contada se não fosse Inês Etienne Romeu. Ela conseguiu memorizar tanto os nomes de 9 presos políticos que foram lá executados quanto os codinomes de 19 torturadores e de alguns de seus colaboradores

A Casa da Morte, os crimes contra a humanidade e a prescrição penal[1]

por Rômulo de Andrade Moreira[2]

“É bem conhecido o exemplo de homens comuns, de todos os horizontes da vida, que se transformaram em torturadores ou assassinos em massa nas burocracias totalitárias, sem que nada na singularidade de suas histórias, sintomas ou fantasias os predispusesse a essas tarefas. Desistiram de seus valores, de seus desejos, de suas repressões singulares e ganharam em troca o conforto de uma vida regrada por uma só exigência: a de ser um membro funcional do grupo, um bom funcionário.”[3]

I – A CASA DA MORTE

Esta expressão foi empregada pela Professora Isabel Cristina Leite, Doutora em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, para designar um lugar clandestino montado pelo Centro de Informações do Exército, que servia para torturar e matar opositores do regime de exceção, no triste período da ditadura militar brasileira.

Umas das presas nessa “Casa da Morte” foi Inês Etienne Romeu, que no período compreendido entre os dias 8 de maio a 11 de agosto de 1971 sofreu todo tipo de tortura, além de ter sido estuprada pelos agentes do governo militar.

Dos ativistas levados para a “Casa da Morte”, ela foi a única que conseguiu sobreviver; pelo menos 22 opositores do regime, segundo estimativas oficiais, não resistiram às torturas e foram sumariamente executados. O advogado goiano Paulo de Tarso Celestino da Silva, capturado em 12 de julho de 1971, foi um deles.

Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, Inês Etienne Romeu contou que Paulo de Tarso Celestino da Silva foi colocado no pau de arara e, durante quase 30 horas ininterruptas, torturado com choques elétricos; até hoje o seu corpo não foi encontrado: “Obrigaram-no a ingerir uma grande quantidade de sal. Durante muitas horas, eu o ouvi suplicando por um pouco d’água”, disse ela. Em julho de 2020, o Ministério Público Federal denunciou três militares pelo sequestro e tortura do ex-militante Paulo de Tarso: os sargentos Rubens Gomes Carneiro, o “Boamorte” e Ubirajara Ribeiro de Souza, o “Zezão”, além do soldado Antônio Waneir Pinheiro Lima, o “Camarão”.

Além de participação nos crimes de tortura, execução e ocultação de cadáver de Paulo de Tarso Celestino da Silva (dentre outros presos políticos), Antônio Waneir Pinheiro Lima, o “Camarão”, é apontado por Inês Etienne Romeu como o homem que a estuprou duas vezes durante os quase três meses em que esteve presa na “Casa da Morte”.

Aos 77 anos, o ex-paraquedista do Exército, que ganhou o apelido pelo tom avermelhado da pele, é o único militar que responde por violência sexual durante o período da ditadura militar.

Segundo matéria do jornalista André Bernardo, da BBC News Brasil, a “Casa da Morte”, muito antes de ser usada como aparelho clandestino de tortura pelo regime militar (antigo nº. 668, da Rua Arthur Barbosa, no Bairro de Caxambu), pertenceu ao alemão Ricardo Lodders, preso pelo menos duas vezes por suspeita de espionagem durante a Segunda Guerra.

Última presa política a ser libertada no Brasil, não pela anistia, mas sim em liberdade condicional, Inês Etienne Romeu resolveu denunciar a existência da “Casa da Morte” de Petrópolis. Mais que memorizar os nomes de torturados e torturadores, ela conseguiu descrever a planta da casa: um imóvel de três quartos, sala, banheiro e garagem subterrânea. Também recordava o número de telefone do lugar: 4090. Com a ajuda do jornalista Antônio Henrique Lago, pesquisou catálogos da companhia telefônica de Petrópolis. Demorou, mas achou. O número levou ao assinante e, dali, ao endereço da “Casa da Morte”: Rua Arthur Barbosa, nº. 668.

No início da década de 1970, o filho de Ricardo, Mário Lodders, cedeu o sobrado para o General José Luiz Coelho Neto, morto em 1986, e então subcomandante do Centro de Informações do Exército, mas continuou morando na casa que faz parte do terreno. Por diversas vezes, Mário Lodders visitou a “Casa da Morte”. Numa dessas ocasiões, chegou a oferecer uma barra de chocolate para Inês Etienne Romeu.

Conforme Eduardo Schnoor, Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e pesquisador da Comissão Nacional da Verdade, “o sobrado da Arthur Barbosa foi escolhido por ser um lugar isolado e os agentes podiam circular livremente, sem chamar a atenção de ninguém. Houve muitas casas como a de Petrópolis na época da ditadura. Herdada do exército francês, essa metodologia visava desestruturar o prisioneiro. Eles nunca sabiam onde estavam. Eram trocados de lugar o tempo inteiro para evitar o reconhecimento do seu paradeiro.”[4]

II – QUEM FOI INÊS ETIENNE ROMEU

Inês Etienne Romeu era uma mineira da cidade de Pouso Alegre, participante de grêmio estudantil, graduada em História e bancária como profissão. Foi integrante da Vanguarda Popular Revolucionária, um dos grupos que lutaram contra a ditadura militar, tendo participado do sequestro do embaixador suíço Giovanni Bucher, no dia 7 de dezembro de 1970, em troca da libertação de 70 presos políticos. Em 16 de janeiro de 1971, o embaixador suíço foi libertado.

Com o fim do sequestro, Inês Etienne Romeu decidiu abandonar a luta armada e exilar-se no Chile, mas em 5 de maio de 1971 ela foi capturada por agentes do Delegado Sérgio Paranhos Fleury, em São Paulo, sob acusação de integrar o comando da Vanguarda Popular Revolucionária. Depois de ser levada para o Departamento Estadual de Ordem Política e Social, onde sofreu as primeiras sessões de tortura, foi transferida para a “Casa da Morte”, quando tinha apenas 29 anos.

Ao chegar ao Rio de Janeiro, Inês Etienne Romeu ainda tentou atirar-se debaixo de um ônibus, mas escapou com vida. No cativeiro, foi submetida a uma rotina de violência e humilhação. Em depoimento à Ordem dos Advogados do Brasil, em 1979, contou que foi “obrigada a limpar a cozinha nua, ouvindo gracejos e obscenidades, e a qualquer hora do dia ou da noite estava sujeita a sofrer tortura física ou psicológica, como choques elétricos ou injeções de pentatol sódico, o ´soro da verdade`. Disse ela: “Um dos mais brutais torturadores arrastou-me pelo chão, segurando-me pelos cabelos. Depois, tentou estrangular-me e só me largou quando perdi os sentidos. Esbofetearam-me e me deram pancadas na cabeça.”

No inverno, quando a temperatura em Petrópolis podia chegar a menos de 10ºC, obrigavam-na a tomar banhos gelados de madrugada ou a se deitar nua no cimento molhado. Em três ocasiões ela tentou o suicídio: numa delas engoliu vidro moído; noutra, cortou os pulsos. “Eu estava arrasada, doente, reduzida a um verme e obedecia como um autômato”, contou à Ordem dos Advogados do Brasil.

Segundo relato da historiadora Isabel Cristina Leite, “Inês sobreviveu aos horrores daquela casa e, apesar de ter sido vítima de todo tipo de tortura e humilhação, nunca entregou ninguém. Na saída, foi atrás de seus algozes, obteve êxito ao denunciá-los e virou símbolo da luta contra os anos de chumbo. Conseguiu tanta visibilidade que a ditadura se sentiu perdendo o controle da situação. Os militares chegaram a pensar em revogar a Lei da Anistia por causa de Inês e do movimento que ela liderou.”

Depois de libertada, pesando apenas 32 quilos, foi deixada na casa de uma irmã em Belo Horizonte e levada para um hospital. Lá, os advogados optaram por oficializar sua prisão como forma de protegê-la de seus algozes. Condenada à pena de prisão perpétua com base no art. 28 da Lei de Segurança Nacional, cumpriu pena de 8 anos (de 1971 a 1979) por ter participado do sequestro do embaixador suíço.

A história da “Casa da Morte” não teria sido contada se não fosse Inês Etienne Romeu. Ela conseguiu memorizar tanto os nomes de 9 presos políticos que foram lá executados — como Carlos Alberto Soares de Freitas, o “Beto”, que comandou a Presidenta Dilma Rousseff nos tempos da VAR-Palmares — quanto os codinomes de 19 torturadores e de alguns de seus colaboradores, entre eles, o médico Amílcar Lobo (1939-1997), o “Doutor Cordeiro”.

O sofrimento de Inês Etienne Romeu não terminou com a soltura da prisão, em 1979. Em 11 de setembro de 2003, sua diarista a encontrou, caída e ensanguentada, em seu apartamento no bairro da Consolação, em São Paulo. Na véspera, ela tinha pedido ao porteiro que deixasse subir um marceneiro para fazer um reparo em sua casa. O traumatismo craniano a deixou com sequelas na fala e nos movimentos, e o caso nunca foi elucidado, tendo sido registrado como um mero “acidente doméstico”.

Seis anos depois do misterioso “acidente doméstico”, ela recebeu, durante cerimônia em Brasília, em 2009, um prêmio de direitos humanos na categoria de Direito à Memória e à Verdade, das mãos do então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ela morreu na madrugada do dia 27 de abril de 2015, aos 72 anos, enquanto dormia em sua casa, na cidade de Niterói, no Rio de Janeiro.[5]

III – A DECISÃO DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª. REGIÃO

A 1ª. Seção Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª. Região confirmou, por maioria, uma decisão anterior da Corte que tornou réu o sargento Antonio Waneir Pinheiro de Lima, acusado de sequestrar, manter em cárcere privado e estuprar Inês Etienne Romeu, em 1971. No julgamento foi apreciado e negado um recurso de embargos infringentes apresentado pela defesa contra a primeira decisão do próprio Tribunal, que já havia recebido a denúncia apresentada à Justiça Federal, em 2018, pelo Ministério Público Federal. Agora, o mérito da ação penal será julgado pela Justiça Federal de Petrópolis.

No primeiro julgamento que recebeu a denúncia contra o agora réu, realizado pela 1ª. Turma Especializada, em agosto de 2019, a Desembargadora Federal Simone Schreiber, que apresentou o voto vencedor naquela sessão, entendeu pela existência de indícios suficientes de autoria e materialidade dos fatos. Segundo ela, a Lei da Anistia (Lei nº. 6.683/79), embora tenha sido declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, viola disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos (o Pacto de São José da Costa Rica), da qual o Brasil é signatário. Outrossim, afirmou que o Estatuto de Roma, do qual o Brasil igualmente é subscritor, estabelece que os crimes contra a humanidade não são alcançados pela prescrição e nem pela anistia, observando que, em decorrência desse acordo, foi promulgada a Lei nº. 12.528/11, que instituiu a Comissão Nacional da Verdade.

Vejamos, pois absolutamente irrepreensível, trecho (embora longo) do referido acórdão; assim escreveu a Desembargadora Federal Simone Schreiber:

“A constitucionalidade da Lei nº. 6.683/79, afirmada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF nº. 153, não impede a realização do controle de convencionalidade da Lei de Anistia em face da Convenção Americana de Direitos Humanos. A constitucionalidade de uma norma não implica, necessariamente, na sua convencionalidade, eis que os chamados ´Controle de Constitucionalidade` e ´Controle de Convencionalidade` são mecanismos diversos de aferição da compatibilidade de uma lei com norma de hierarquia superior, com parâmetros distintos.

“As graves violações de direitos humanos perpetradas contra a população civil (torturas, espancamentos, ofensas sexuais, sequestros, desaparecimentos forçados, e outros) foram usadas no Brasil, durante todo o regime ditatorial, como mecanismos institucionais de controle e repressão estatal de opositores políticos e perseguidos do regime. Integravam e determinavam, portanto, a política de Estado adotada pelos detentores do Poder à época, de modo que os crimes praticados nessa conjuntura configuram crime de lesa-humanidade, cuja definição já era prevista em normas de direito internacional na data dos fatos tratados nesta ação penal.

“A categoria de ´crime contra humanidade` refere-se a uma qualificação atribuída pela comunidade internacional a crimes já conhecidos e comumente previstos nas legislações internas, quando praticados em um dado contexto histórico de ataques sistemáticos e generalizados à população civil, e não um delito autônomo que carece de tipificação. Os delitos imputados são estupro e sequestro, figuras típicas previstas em nosso Código Penal.

“Na medida em que o Estado brasileiro impede a persecução criminal de um suposto autor de crime de lesa-humanidade, com base na Lei de Anistia, contraria norma de observância imperativa no cenário internacional (com status de jus cogens): a obrigatoriedade de investigar e, se for o caso, punir civil e criminalmente a conduta.

“À luz das normas de direito internacional e da interpretação dada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, a aplicação da Lei de Anistia para impedir o prosseguimento de processos penais ajuizados em desfavor de supostos autores de crimes contra humanidade viola os arts. 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, além dos arts. 1.1 e 2.

“As condenações do país pela Corte Interamericana de Direitos Humanos nos Casos Gomes Lund e Outros vs. Brasil e Herzog e Outros vs. Brasil decorreram diretamente da omissão do Poder Judiciário em adotar a Convenção Americana como parâmetro de controle de convencionalidade da Lei nº. 6.683/79, após 10 de dezembro de 1998, data de ratificação da cláusula facultativa de jurisdição obrigatória (art. 62 da Convenção Americana de Direitos Humanos).

“As decisões e as interpretações da Convenção Americana de Direitos Humanos proferidas pela Corte Interamericana são dotadas de caráter vinculante, de maneira que os magistrados não podem mais invocar a Lei nº. 6.683/79 para reconhecer a extinção de punibilidade dos supostos responsáveis pela prática dos crimes contra humanidade.

“Em razão do efeito paralisante da norma supralegal ´Convenção Americana de Direitos Humanos` são inaplicáveis os dispositivos da Lei nº. 6.683/79 que impeçam persecução penal de acusados de praticar crimes contra humanidade. A aplicação de regras ordinárias internas de prescrição é incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos.

“Apesar de não ter ainda ratificado a Convenção Sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade (1968), o Brasil, por meio do Decreto Legislativo nº. 112, de 6 de junho de 2002, aprovou o texto do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, o qual contempla inequivocamente a imprescritibilidade dos crimes contra humanidade, integrando o ao nosso ordenamento.

“Assim como a Convenção Americana de Direitos Humanos, o Estatuto de Roma é também tratado internacional em matéria de direitos humanos, que não fora aprovado pelo quórum especial previsto no art. 5º., § 3º. da Constituição Federal. Logo, assume o caráter de norma supralegal, cuja consequência é a paralisação da lei ordinária nacional, no caso a aplicação dos dispositivos referentes à prescrição para os crimes de lesa-humanidade.

“A imprescritibilidade dos crimes contra humanidade não é em nada incompatível com a Constituição Federal, que, inclusive, atesta que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos (art. , II da Constituição Federal).”[6]

Decisão, como veremos, corretíssima!

IV – A NORMATIVIDADE APLICÁVEL AO CASO

Em primeiro lugar, deve-se fazer referência ao art. 4º., II, da Constituição Federal, ao dispor, de maneira expressa e induvidosa, que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais, dentre outros, pelo princípio da prevalência dos direitos humanos.

É bem verdade que a Lei nº. 6.683/79 concedeu “a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”, considerando-se “conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”, excetuando-se “os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.” É a conhecida Lei da Anistia.

Nada obstante, décadas depois, já no período de amadurecimento de nossa democracia (ainda incipiente, como se vê nos dias atuais), foi promulgada a Lei nº. 12.528/11, criando a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias[7], a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional, com os seguintes objetivos: 1) esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos mencionados no caputdo art. 1º.; 2) promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior; 3) identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caputdo art. 1º e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade; 4) encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1º. da Lei nº. 9.140, de 4 de dezembro de 1995; 5) colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos; 6) recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e 7) promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações.

Ainda se faz referência à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), promulgada pelo Brasil por meio do Decreto nº. 678/92, cujo art. 1º. estabelece que “os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.”

Já o seu art. 2º. impõe aos respectivos signatários o dever de adotar disposições de direito interno, “se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no art. 1º. ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.”

Ademais, ao tratar das garantias judiciais, determina que “toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”, estabelecendo, outrossim, que “toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.”

O art. 62 prescreve que “todo Estado Parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial, a competência da Corte em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção.”

Por fim, faz-se menção, por oportuno – e conforme acentuado no acórdão acima referido – ao Decreto nº. 4.388/02, que promulgou o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, com competência para o processo e julgamento dos delitos mais graves que afetam a comunidade internacional no seu conjunto, entre eles os crimes contra a humanidade (art. 5º. 1, b), considerando-se como tais, dentre outros (desde que cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque), a prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional; a tortura; a agressão sexual ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável; o desaparecimento forçado de pessoas; e outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.”

Importante e fundamental: tais crimes, por força do art. 29, são imprescritíveis!

V – A DOUTRINA BRASILEIRA

Na doutrina pátria, quem tratou melhor o tema, ao que parece, foram Luiz Flávio Gomes e Valerio de Oliveira Mazzuoli, nos seguintes termos:

“Tanto a jurisprudência internacional quanto a doutrina mais autorizada admitem que a definição de crime contra a humanidade vem do final da Segunda Guerra e que desde essa data todos os Estados-membros da ONU contam com a obrigação de investigar e punir quaisquer tipos de conduta capazes de configurar tais crimes, devendo adotar todas as medidas cabíveis para que a repressão desse ilícito ocorra. As normas que obrigam todos os Estados pertencem, de forma inequívoca, ao universalismo, ou seja, ao direito universal, que constitui a quarta onda da evolução do Estado, do Direito e da Justiça.”

Especificamente sobre o caso brasileiro, continuam os autores afirmando haver “uma enorme polêmica sobre se os crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura militar brasileira (1964 a 1985) poderiam (ainda hoje) ser investigados e punidos.”

Nada obstante a controvérsia apontada, os autores respondem afirmativamente, levando-se em consideração, especialmente, a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, pois, além de “configurarem inequivocamente crimes contra a humanidade, trata-se de crimes imprescritíveis”, razão pela qual “as leis de anistia não possuem (frente a tais delitos) nenhum valor jurídico (ou seja, não têm validade).”

Para Gomes e Mazzuoli, tais delitos praticados nas ditaduras militares “não podem ser tratados como crimes comuns (ou políticos), pois ostentam um excepcional grau de crueldade e de tortura moral e física, e ferem a humanidade (logo, são puníveis em qualquer tempo).”

Para a caracterização de crime contra a humanidade os mesmos autores elencam algumas características, inclusive, a partir da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a saber: a) atos desumanos descritos no Estatuto de Roma, tais como assassinatos, desaparecimento de pessoas e violações sexuais; b) atos praticados durante conflito armado ou período de exceção; c) atos praticados no contexto de uma política de Estado ou de uma organização que promova essa política; e d) atos praticados contra a população civil, de forma sistemática ou generalizada e com conhecimento do agente.

Ademais, “a proibição de cometer crimes de lesa-humanidade é uma norma imperativa de direito internacional geral (jus cogens) e a sua punição é obrigatória, além de serem imprescritíveis.” (grifamos). Tal imprescritibilidade decorre, não somente do próprio direito internacional geral (jus cogens), como “do caráter permanente de alguns crimes, como é o caso do desaparecimento forçado.”

E, arremetam: “Essa espécie de imprescritibilidade que, na verdade, não passa de uma extensão ou complementação (ou seja, de um desdobramento) do que está previsto no art. 5º., XLIV, da Constituição, vem do direito universal (ou universalismo), que constitui a quarta onda evolutiva do Estado, do Direito e da Justiça, mas precisamente das resoluções da Organização das Nações Unidas, de 1946, bem assim dos chamados Princípios de Nuremberg, de 1950 (que foram também aprovados e adotados pela Organização das Nações Unidas).”

Outrossim, ainda respaldando-se nas lições dos dois juristas brasileiros, “não importa a data dos delitos, pois os crimes das ditaduras latino-americanas foram crimes contra a humanidade porque consistiram em atos desumanos, generalizados ou sistemáticos, praticados contra a população civil, durante conflito armado ou período de exceção, correspondente a uma política de Estado levada a cabo por agentes públicos ou pessoas que promoveram essa política, praticados com conhecimento desses agentes.”

Por serem crimes que causam “repulsa e horror na consciência universal” não podem ficar impunes, tampouco ser tratados como crimes comuns ou políticos, exatamente por ostentarem “um excepcional grau de crueldade e de tortura moral e física”; de tal maneira que “o transcurso do tempo, nesses casos, não afasta a punibilidade dos delitos, por serem imprescritíveis, pois afetam de modo profundo a consciência universal, não admitindo anistia (auto anistia). Tampouco as sentenças absolutórias têm valor, pois são inválidas por violarem o direito universal, e os condenados cumprirão suas penas em cárceres comuns, e não militares.” (grifamos).

E, finalmente, apontam, dirimindo quaisquer dúvidas, as diferenças entre tais crimes (contra a humanidade) e os crimes políticos, estes sim, passíveis de prescrição e de anistia; assim o fazem, sinteticamente: 1) No crime contra a humanidade ataca-se a população civil generalizadamente, enquanto que nos crimes políticos atacam-se agentes do regime (do Estado), e por motivação política; 2) No primeiro caso, os autores atuam em nome de uma política de Estado, e no segundo caso os autores não se vinculam a nenhuma política de Estado, atuando em nome de uma ideologia, de um grupo separatista, etc.; e 3) Enquanto no crime contra a humanidade atua-se contra os opositores do regime (do Estado), no crime político atua-se contra os defensores do regime (do Estado).[8]

Merece destaque, igualmente, dentre os doutrinadores pátrios, André de Carvalho Ramos, segundo o qual “a persecução penal é considerada um dever fundamental do Estado, especialmente necessária para a prevenção de crimes contra os direitos humanos, na medida em que os violadores de direitos humanos não mais terão a certeza da impunidade. A investigação de fatos e a persecução criminal dos responsáveis por violações de direitos humanos são consideradas essenciais para cumprir tal tarefa, como decorrência da obrigação de assegurar o respeito aos direitos humanos.”

Para ele, “a compatibilidade do Estatuto de Roma, enquanto tratado de direitos humanos, com a Constituição de 1988 é inegável, sendo sempre possível a superação de conflitos aparentes entre tais diplomas através da práxis interpretativa, assegurando-se o fim da impunidade obtida por criminosos, muitas vezes pela força das armas, no âmbito de seus países.”[9]

Já o festejado Professor Japiassú afirma que, “ainda que demore mais alguns anos, certamente valerá sonhar e lutar por um mundo no qual governos despóticos e os responsáveis por perseguições atrozes e implacáveis não mais terão um lugar para delinquir e, após, um para se esconder”, e a mensagem que fica, para ele, “é a de esperança; a esperança de um mundo justo.”[10]

Por fim, aduzimos a palavra do jurista Pedro Dallari, ex-coordenador da Comissão Nacional da Verdade, segundo o qual “à semelhança do que ocorreu em outros países do mundo, inclusive na América Latina, o Judiciário brasileiro deverá rever a posição que vem prevalecendo em suas decisões e julgue criminalmente os responsáveis pelas graves violações de direitos humanos perpetradas pela ditadura militar, afinal são crimes terríveis, praticados por funcionários públicos no exercício de sua função, e não podem, portanto, ser qualificados como crimes políticos ou conexos, estes, sim, suscetíveis de proteção pela Lei da Anistia.”[11]

VI – A DOUTRINA ESTRANGEIRA

  Entre os autores estrangeiros, faz-se referência a Kai Ambos, para quem “o argumento de que há uma ordem normativa internacional, baseada em certos valores dignos de serem defendidos pelo Direito Penal Internacional, remonta à ideia kantiana de dignidade humana como fonte de direitos humanos (civis) fundamentais, os quais, em última análise, precisam ser protegidos por um direito (penal) supra ou transnacional.”

Para o jurista alemão, a dignidade humana – compreendida como um conceito autossuficiente e humanista – “confere a qualquer pessoa o status jurídico de ser humano, independente e antes da existência de uma comunidade constituída como um Estado.”

De uma tal maneira que “a legitimidade deste direito penal mundial pode ser garantida pela limitação de sua aplicação à proteção dos direitos humanos mais básicos – a uma espécie de ´mínimo ético`, fundamentado normativamente em direitos humanos e reconhecido universalmente por todas as culturas – e adaptável a todas elas -, é em si intercultural e pode, portanto, ser aplicado entre nações e culturas em escala universal.”

Ora, tal concepção, naturalmente, “implica em uma limitação da soberania clássica do Estado, na qual o Estado não poderá mais alegar tal direito se falhar em proteger, ou violar ativamente, direitos humanos fundamentais.”

Para Kai Ambos, o Direito Penal Internacional, e suas respectivas normas, pode ser considerado “um progresso da civilização e, neste sentido, um projeto ético. Os crimes internacionais a serem prevenidos e/ou punidos por este direito afetam valores internacionais fundamentais, e eles podem chegar a ser considerados como ius cogens, isto é, crimes de caráter peremptório, não derrogável e primordial.” (grifamos).

E, para concluir, afirma: “Levar os direitos humanos, e os cidadãos como sujeitos destes direitos, a sério, muda o foco do coletivo (Estados soberanos) para o individual (cidadãos como sujeitos de direitos), e permite derivar o ius puniendi das violações a direitos dos indivíduos reconhecidos universalmente, transnacionalmente e interculturalmente.”[12]

Já os juristas Philippe Kirsch e Darryl Robinson, por sua vez, acentuam a importância do Estatuto de Roma como instrumento para proporcionar uma “estrutura de uma nova instituição extraordinária, mas, ao fim e ao cabo, sua vitalidade e seu impacto dinâmico dependerão da dedicação e da capacidade de sua equipe, e do apoio político que receber dos Estados e da população mundial.”

Conforme reconhecem, “pode-se dizer que ele já teve um impacto educacional, ajudando a alertar os formuladores de políticas para os problemas da impunidade e, espera-se, ajudando a inculcar o hábito da justiça. A Conferência de Roma foi um passo dramático na mobilização permanente da comunidade internacional com relação a questões de responsabilização, mas não foi o primeiro e não pode ser o último.”[13]

VII – CONCLUSÃO

Diante do exposto, e à guisa de conclusão, entendemos que a decisão proferida pela 1ª. Seção Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª. Região foi acertada, afinal, trata-se de uma acusação de crime imprescritível, nos termos do Estatuto de Roma, como acima sustentado à luz da melhor doutrina nacional e internacional.

Oxalá outros criminosos sejam denunciados pelo Ministério Público e condenados pela Justiça, resgatando-se, ao menos em parte, a dívida enorme que a ditadura militar contraiu com a sociedade brasileira.


[1] Este artigo foi publicado, originalmente, na obra coletiva organizada pelo Professor Ney Fayet Júnior, “PRESCRIÇÃO PENAL – TEMAS ATUAIS E CONTROVERTIDOS: DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA”, Editora Aspas, 2021.

[2] Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.

[3] CALLIGARIS, Contardo. Cartas a um jovem terapeuta: reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos. São Paulo: Paidós, 2021, pp. 201 e 201.

[4] Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55492932. Acesso em 08 de março de 2021.

[5] Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55492932. Acesso em 08 de março de 2021.

[6] Processo nº. 0500068-73.2018.4.02.5106. Disponível em: https://www10.trf2.jus.br/portal/trf2-confirma-recebimento-da-denuncia-contra-sargento-acusado-de-tortura-e-estupro-na-casa-da-morte-em-1971/. Acesso em 08 de março de 2021.

[7] “Art. 8º. É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961 , e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969 , asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos.”

[8] GOMES, Luiz Flávio e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito Supraconstitucional – Do Absolutismo ao Estado Constitucional e Humanista de Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, pp. 161-171.

[9] RAMOS, André de Carvalho. O Estatuto do Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, pp. 258-289.

[10] JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional – A Internacionalização do Direito Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 258.

[11] Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55492932. Acesso em 08 de março de 2021.

[12] AMBOS, Kai. Pena sem soberano? Ius puniendi e função do direito penal internacional – Dois estudos para uma teoria coerente do direito penal internacional. Brasília: Gazeta Jurídica, 2014, pp. 69-89.

[13] KIRSCH, Philippe e ROBINSON, Darryl. A Construção do Acordo na Conferência de Roma. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 47.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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