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A Escolha de Dra. Luana: de que borda da terra plana pular?, por Adriana Coelho Saraiva

A Escolha de Dra. Luana: de que borda da terra plana pular?

por Adriana Coelho Saraiva

O excelente depoimento da médica Luana Araújo à CPI da Covid levantou uma série de questões, algumas delas bastante interessantes. Foram inúmeros os comentários tecidos sobre ser ela de direita ou de esquerda; se votou no governo que sequer a nomeou; se suas concepções são, afinal, convergentes ou não com o conservadorismo social do governo que a repeliu categoricamente. Mas foi inquestionável que a médica Luana marcou muitos pontos quando defendeu a perspectiva metodológica-científica; a ineficácia do tratamento preventivo para a covid, em especial da utilização do famigerado Kit Covid, enfrentando com galhardia os mais convictos senadores obscurantistas.

Sim, porque este é o grande e inacreditável horizonte com que nos deparamos em pleno 2021: convencer uma parcela crescente (?) da sociedade de que a terra não é plana; de que inexiste tratamento preventivo para a presente pandemia (para além de barreiras físicas como o uso de máscaras e o isolamento social); de que não há um grande complô global responsável por enganar as pessoas e mantê-las em casa com medo de uma simples gripezinha. Então, diante desse cenário, o depoimento da médica virologista teve importância capital, mesmo que aleguem alguns que nem tão brilhantes ou excepcionais foram suas palavras e explicações. 

A perspectiva de Luana Araújo, entretanto, também apontou para uma questão importante e que se refere a boa parte dos profissionais da saúde (como de outras áreas de exatas). O fato de trabalharem com uma noção bastante limitada de técnica e ciência. Para profissionais como a carismática e certeira Dra. Luana, a técnica é neutra, a “ciência não tem lado’, nem vínculos mais sutis com a sociedade.

Ao contrário do que pensa nossa heroína da CPI, nada disso é verdade. No campo do estudo das relações entre Ciência, tecnologia e sociedade, sabe-se há muito que a técnica não é neutra, apresenta vínculos indiscutíveis com a sociedade (e com os interesses que nela predominam); bem como tem seus ‘lados’ preferenciais. Ou seja, escolhe se vai investir na pesquisa de problemas que atormentam enormes populações com baixo poder aquisitivo ou se vai avançar em direção a questões que beneficiam pequenos segmentos mais afortunados da sociedade (como a escolha da pesquisa que resultou no viagra em detrimento de alguma que resulte em tratamento de doenças que assolam populações pobres da África ou mesmo daqui.) Sim, a ciência tem vínculos inquestionáveis com a economia e terá, cada vez mais, na medida em que não lutemos por uma ciência pública, fincada em compromissos com a sociedade, realizada no âmbito de instituições públicas – como nossas universidades e institutos públicos –  desenvolvida por intelectuais e cientistas públicos.

Mas há algo que distingue a ciência daquilo que é apresentado nas rodas dos obscurantistas clorokiners: a ciência é cumulativa, constituída por meio de experimentos e ou evidências metodologicamente controladas e suas verdades, embora eventualmente transitórias, só abrem espaço para novos achados a partir do inesgotável diálogo entre pares.

O problema da Dra. Luana, portanto, como a de grande parte dos profissionais da área de saúde ou exatas, é não possuir uma visão mais ampla da ciência, da técnica, da sociedade. Essa perspectiva não precisa ser ‘política’ strictu senso  – embora, pessoalmente, esta autora perceba todo posicionamento na sociedade como político, inclusive o pessoal. Falta-lhe um embasamento sócio-filosófico. Assim, esses profissionais, eventualmente, percebem o problema, mas não conseguem compreendê-lo bem. 

No caso da Dra. Luana, não lhe foi possível entender como aquele que ora ocupa o cargo de presidente da República e o conjunto de asseclas que o rodeiam OPTARAM por uma visão obscurantista, negacionista e desinformativa sobre a pandemia e as formas de lidar com ela, como método de abordagem e atuação política. Par além dos fenômenos complexos que envolvem a fase das pós-verdades,  que ora atravessamos (e que não me proponho a discutir nesse momento) é preciso reconhecer que aqui se trata de uma perspectiva ideológica que sobrepuja e catapulta ao lixo qualquer visão técno-cientifica, racional, metodologicamente constituída, adotando-se, ao contrário, a abordagem fundamentalista, conspiracionista e emburrecedora da sociedade brasileira, que já é vítima de tantas atrocidades nesse momento. 

A apresentação feita pela infectologista Luana Araújo demonstra claramente como os que seguem carreira na área das ciências da saúde, ou quaisquer outras, precisariam ter mais instrumentos para conseguirem atuar na sociedade da forma a que se propõe. Ou seja, mostra a importância das Ciências Sociais e da filosofia (inclusive da Ciência), na formação desses profissionais, posto que isso poderia contribuir para sua compreensão da realidade e os tornaria – talvez… – menos vulneráveis a perspectivas ideológicas infundadas no trato profissional.

Corro, é certo, o risco de simplificar excessivamente o problema, pois é inegável que o fenômeno da constituição dessas perspectivas ideológicas anticientíficas e obscurantistas apresenta um grau de complexidade e amplitude que envolve um debate em andamento. Além disso, o caso em questão também se relaciona com especificidades da categoria médica, face à sua inserção em sistemas de valores e comportamentos, como atores sociais que são, integrantes de uma elite corporativa, o que os leva, em geral, à adoção de inúmeras posturas elitistas. Mas, de qualquer modo, é inegável que uma base sócio- filosófica na formação desses profissionais poderia ao menos ajudar a driblar muitos dos absurdos verificados atualmente, bem como evitar que fossem ‘vítimas preferenciais’ de perspectivas fundadas em qualquer espécie de terraplanismo científico, como vem acontecendo sobejamente nesse país.

Adriana Coelho Saraiva – Doutora em Ciências Sociais pelo centro de Estudos Latino Americanos –ELA / UnB. Analista em Ciência e Tecnologia – Senior do CNPq

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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  • A Dra. Luana Araújo, precoce, bela, inteligente, lacradora, cantora etc. prestou um depoimento perfeitamente performático, demonstrando preparo, argúcia, senso de oportunidade e tudo mais. Não entendo como, com essa bagagem toda, inclusive com formação pós graduada lá fora, disponibilizou-se a integrar o governo que, sabe toda a instância mineral, como fala o Mino, é escancarada e alardeamente negacionista. Uai?

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