A Faculdade de Direito da USP entra nas políticas afirmativas e começa a viver essa diversidade, afirma diretor da FDUSP

O diretor da Faculdade de Direito da USP, o professor e advogado Floriano Azevedo Marques foi entrevistado por Ana Beatriz Prudente.

A faculdade de direito da USP entra nas políticas afirmativas e começa a viver essa diversidade, afirma diretor da FADUSP

por Ana Beatriz Prudente

Floriano de Azevedo Marques Neto é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), instituição na qual atualmente é a pessoa mais jovem a ocupar o cargo de diretor. Ele é extremamente diplomático e está fazendo uma gestão de portas abertas.

A pandemia representa um choque para a sociedade global. Ninguém imaginava que algo assim aconteceria com todos nós, talvez apenas alguns roteiristas de cinema. Mas, a verdade é que o mundo não se preparou para viver uma pandemia e a consequência está aí. As muitas vidas perdidas, os danos econômicos e uma sociedade que tem que se reinventar. Nas últimas décadas a gente vem passando por processos de transformações muito intensos, do ponto de vista das nossas relações interpessoais e da representatividade de diversos grupos que compõem a sociedade. Instituições seculares que sempre foram dominadas por pessoas brancas, eurodescendentes e de classe abastada começaram a receber a presença de pessoas de outras etnias, em especial de pessoas negras e com outras origens socioeconômicas. Essa representatividade nos espaços tradicionais é fruto das lutas dos movimentos sociais, que aliadas aos representantes políticos, batalharam muito pela ocupação desses novos espaços.

Sendo assim, podemos dizer que a pandemia intensificou a mudança que ocorria nesses espaços. Uma instituição que ilustra esse processo é a Faculdade de Direito da USP, local onde se formaram os grandes nomes do direito brasileiro, da política brasileira e das famílias mais tradicionais do Brasil. Uma faculdade que foi criada pensando em atender as necessidades da elite agora está mais democrática, com alunos das mais diversas etnias, das mais diversas cores e com as mais diversas narrativas pessoais. Como é administrar uma instituição como essa em uma fase de completa mudança, e ainda, em meio a uma pandemia? Para entender o tamanho desse desafio, conversei com exclusividade com o atual diretor da Faculdade de Direito da USP, o professor e advogado Floriano Azevedo Marques.

Floriano de Azevedo Marques Neto é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), instituição na qual atualmente é a pessoa mais jovem a ocupar o cargo de diretor. Ele é extremamente diplomático e está fazendo uma gestão de portas abertas.

Além de ser jovem no quesito idade, Floriano também possui uma alma jovial e muito a frente de seu tempo. Isso o ajudou a lidar com todas as novidades impostas pela pandemia e pelo novo contexto em que a USP se encontra. Ele é pai de adolescentes e de um bebê, o que o faz ser um homem muito preocupado em deixar um futuro melhor para as próximas gerações.

Possui Graduação em Direito (1990), doutorado em Direito (1999), e Livre-Docência em Direito (2008), todos pela Universidade de São Paulo. Tem 9 livros publicados, vários capítulos em livros de coletânea e em co-autoria, e também inúmeros artigos em revistas especializadas. Floriano é uma figura extremamente respeitada e tem grande experiência na área de Direito, com ênfase em Direito do Estado.

Ana Beatriz Prudente – O senhor se torna diretor da faculdade de direito em um momento muito especial dessa instituição. Eu conheço a faculdade de direito há muito tempo e sei que o perfil dessa faculdade foi mudando. Ela está em um processo de transição. A gente percebe esse processo de mudança com a chegada de uma diversidade muito forte, que ganha notoriedade dentro das arcadas, onde começamos a ver as pautas feministas, negras, LGBTQ+ e identitárias. Com certeza isso é um desafio para um gestor, seja de faculdade ou empresa, para lidar com essa diversidade tão inflamada, pois de um lado temos aqueles que são resistentes à presença dessa diversidade e do outro aqueles que querem ser incluídos de fato. Como tem sido administrar essa diversidade em uma faculdade de direito?

Professor Floriano – Quando assumi a diretoria eu fiz um discurso cujo um eixo dele era sobre caracterizar a faculdade de direito como uma instituição que vive na contradição entre a tradição e a ruptura. De um lado, a faculdade tem quase 200 anos e possui uma história muito tradicional, e ela louva e zela muito essa tradição.  Durante a história, a faculdade esteve à frente de inúmeras rupturas, ou seja, em vários momentos da história do Brasil, a faculdade esteve à frente. Então, ela vive com essa aparente contradição entre a tradição e a ruptura. Uma das coisas que me entusiasmou a assumir a direção foi exatamente esse momento que você citou, onde a faculdade de direito da USP entra nas políticas afirmativas e começa a viver essa diversidade. A faculdade que eu me formei nos anos 80 possuía uma presença muito uniforme, eu não diria eugênica, mas sim muito semelhante. Desde que começamos a política de inclusão, isso não tem nem 10 anos, a faculdade passa por uma transformação brutal. Há uma vertente aparente de mudança, que é visível do perfil étnico e do perfil racial do aluno. O pátio da faculdade em 2019 era muito mais diverso. Essa diversificação do alunado traz para dentro da faculdade novas pautas, novos problemas, novas percepções sociais, novas demandas e novas capacidades. Isso sim traz um processo revolucionário. Quando você tem uma pluralidade de alunos que vêm de outros arranjos familiares, os problemas, os exemplos e as temáticas mudam. Quando você começa a incorporar alunos de renda baixa, os problemas e as demandas de conhecimento mudam, e essa mudança acaba por transformar a própria agenda dos professores, pois o debate entre colégios muda de tom. Essa diversidade tem o poder transformador. Então você tem uma mudança nas pautas, que faz com que os professores tenham uma mudança no conteúdo e ao mesmo tempo, você tem uma mudança no perfil do aluno que sai da São Francisco com toda aquela bagagem que a instituição oferece. Então, você deixa de reproduzir elites e passa a produzir elite com novos engajamentos de transformação, sendo que isso também traz três desafios muito grandes.  O primeiro deles é evitar que as políticas afirmativas retrocedam, depois seus opositores se silenciam, mas nunca desistem. O segundo desafio é ir além de preencher as vagas, dando condições para que esses alunos que chegam de lugares distantes possam cursar plenamente o curso de direito. O terceiro e maior desafio hoje, que eu tenho tido a maior gratificação, é de conseguir manter o nível da faculdade incorporando esses alunos, ou seja, não só oferecendo todo o suporte de aula, mas também fornecendo uma mudança de grade para que esse aluno seja cativado. Assim, o desempenho do alunado em geral, tem crescido.  Então, temos conseguido manter, e até mesmo melhorar, o padrão da formação do aluno, sem nenhum comprometimento, pois a diversidade é mãe da qualidade. Lamentavelmente, a gente perde um pouco dessa potência com a pandemia que torna mais dificultoso esse convívio.

Ana Beatriz Prudente – Um aspecto muito interessante de uma forma geral se ajustou com os professores dando aula pelo Google Meet. De uma forma geral, a gente encontrou o caminho. Mas amanhã, boa parte dessas atividades que não são presenciais podem ser que continuem sendo não presenciais. O senhor ainda tem um segundo semestre pela frente com a continuação dessa missão de ditar uma faculdade com esse pós-pandemia e esse processo de transição.  O que a sua gestão está fazendo e qual é a sua preocupação em torno dessa questão de como vamos continuar, pois tudo nos leva a crer em um caminho híbrido. Quais medidas estão sendo tomadas nesse sentido?

Professor Floriano – Quando me propus a ser diretor, em 2017, eu tinha três grandes desafios: dar continuidade e suporte ao avançar a política de inclusão, modernizar a faculdade e concluir o processo de reforma da grade e da reforma da pós-graduação, que eram questões que já tinham sido iniciadas e que tinham que ser concluídas. Esses desafios não eram pequenos e começamos a dar cabo deles, só que, no meio do percurso, veio a pandemia. Em certa medida, a pandemia tornou mais rápido o processo de incorporação de ferramentas tecnológicas, que foi um processo não planejado, mas foi surpreendentemente rápida a migração do quadro docente para o ambiente 100% virtual. Assim, estamos todos muito orgulhosos do esforço e do resultado que conseguimos em tão pouco tempo viabilizar. Para driblar as consequências da pandemia, decidimos atacar isso em 3 linhas. Primeiramente, tínhamos de dar ferramentas para a faculdade funcionar, como zoom para streaming, meeting, moodle e canais do Youtube, que foi rapidamente provido. O segundo foi dar suporte aos alunos, pois para você participar de um curso que se torna virtual da noite pro dia, é preciso ter computador, acesso à banda larga e condições de acompanhar. Tivemos que ceder computadores para os alunos que não tinham a ferramenta, contratar chips com capacidade extra de banda para os alunos que usavam celular e não tinha internet de grande qualidade para usar. A terceira foi dar orientação, suporte e apoio aos professores para mudar radicalmente seus métodos, sendo que tudo isso foi sendo provido a partir de um grande esforço da faculdade. Então acredito que o ano de 2020 foi bem sucedido, apesar de toda a situação. Eu não chego a acreditar que a faculdade passe a ter muitas disciplinas remotas, mas algumas coisas são irreversíveis. Ainda não está certo, mas creio que esse ano de 2021 também esteja perdido para a volta das aulas presenciais, pois há turmas na faculdade de 120 alunos, então não temos salas para comportar esses estudantes todos separados pela distância mínima adequada.

Ana Beatriz Prudente – A faculdade de direito está em um lugar muito especial da cidade, que é o largo São Francisco, inserida em um centro de São Paulo, complexo com muitas questões humanitárias a serem resolvidas. Vocês estão cercados por umas das realidades mais tristes da história, que é a população de rua que vem aumentando, não só em São Paulo mas no mundo inteiro. Como vocês vão lidar com essa realidade, uma vez que a faculdade de direito também tem suas responsabilidades sociais? Como o senhor acredita que a faculdade de direito pode contribuir com essa crise humanitária?

Professor Floriano – Esse é um problema muito bem pontuado, que transcende a capacidade da faculdade de realizar ações para reverter este processo, mas ela sim tem um papel social quanto a isso. Para lidar com essa situação, seguimos tomando e apoiando toda e qualquer medida que tende a amenizar o sofrimento dessa população. Não é possível imaginar outra solução que não seja essa, pois envolve uma política muito mais ampla que eu não me sinto apto a formular, mas a faculdade já segue a desenvolver soluções pontuais para sanar esse problema.

Ana Beatriz Prudente – Eu entendo muito da importância da tomada de decisões que possuem a participação dos alunos, sendo eles os primeiros a serem impactados pela pandemia. Recentemente, também tenho acompanhado a respeito da representação discente durante a pandemia. Queria que o senhor falasse um pouco como tem sido construído essa relação da instituição com os representantes discentes para que as tomadas de decisões sejam encharcadas pelo olhar dos alunos

Professor Floriano – Primeiramente, avanços, mudanças e transformações não se fazem sem a presença de alunos, eles são fundamentais, e eu tenho notado um crescimento na maturidade das representações discentes em relação a suas pautas. O processo de decisão ou se inicia por pressão dos alunos, ou tem neles um influxo muito grande; e em uma faculdade pública esse processo é muito mais complexo, pois eles são transitórios. O processo de decisão tem uma dimensão do diálogo e uma decisão final que é institucional. No quesito do diálogo, eu sou viciado em debate democrático. Desde que começamos a pandemia, já realizamos 5 ou 6 reuniões abertas aos estudantes, debatendo temas importantes. Recentemente, na congregação, decidimos e aprovamos uma metodologia de avaliação dos professores. Sem o papel dos estudantes isso não seria possível

Ana Beatriz Prudente – Para encerrar nossa entrevista, tendo em vista que o senhor tem uma carreira de advogado muito bem sucedida, é um professor querido e um cientista do direito com uma produção muito interessante, porque ser gestor universitário da USP?

Professor Floriano – Eu fiz a minha vida a partir da faculdade de direito, devo muito a ela. De uma certa forma, toda a minha vida foi interessada e equacionada pela faculdade e esses 4 anos de gestão eu considero como uma mínima paga por tudo que eu conquistei. Acho que tenho muito gosto de tentar retribuir e deixar um pouco do meu esforço para melhorar a instituição. O que me fez aceitar essa empreitada foi o fato de eu acreditar muito no momento que estamos passando. Ela tem hoje uma rara conjunção de fatores que propiciam que coisas sejam feitas. O primeiro dos três fatores principais para isso são as políticas de inclusão, que se tratam de um movimento transformador que será objeto de estudo daqui a 100 anos. O segundo se dá ao período em que muitas gerações estão sendo substituídas, transformando o momento propício para mudanças. O terceiro motivo é que chegou a hora de preparar a faculdade para a chegada de seus 200 anos, deixando-a reformada, moderna e bem preparada para as gerações futuras.

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