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A missão dos Blade Runners cariocas, por Fábio de Oliveira Ribeiro

A missão dos Blade Runners cariocas

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Desde tempos imemoriais, civilizar é fazer distinções. Gregos distinguiam a si mesmos dos bárbaros. Romanos faziam o mesmo, mas superaram os gregos porque eram capazes de romanizar povos conquistados.

No mundo antigo havia espaço para todos os deuses. Quando conquistou a Judeia, Roma se deparou com um problema: a intolerância do monoteísmo judaico. Desse monoteísmo nasceu outro que acabou conquistando os corações e mentes dos romanos.

Após se tornar a religião dominante, o cristianismo suprimiu de maneira violenta os cultos dos outros deuses. A convivência entre cristãos e judeus sempre foi problemática. E o problema ficou maior quando o islamismo foi criado a partir dos dois monoteísmo mais antigos, mas não é sobre esse conflito que eu pretendo falar.

O que me interessa aqui é o conflito que a introdução do cristianismo provocou no Brasil. Os índios que aceitaram a religião pregada pelos jesuítas nunca foram realmente incorporados à sociedade colonial. Os colonos e seus descendentes nunca aceitaram compartilhar o controle de seu Estado com os índios cristinizados e com os bastardos gerados pelas índias.

Os demais índios, aqueles que rejeitaram a colonização e a religião foram exterminados ou fugiram do litoral. Os remanescentes deles estão agora sendo convertidos à força e maltratados por pastores bolsonarisras que acompanham os invasores das terras indígenas.

À distinção entre colono português branco e índios/mamelucos rapidamente foi acrescentada a entre branco livre e negro escravo. Os escravos foram liberados, mas a participação deles no controle do Estado também foi vetada. Depois ela foi dificultada.

A Igreja Católica se redime dos pecados coloniais defendendo os índios e apoiando discretamente as demandas dos negros. Mas a influência dela nas instituições brasileiras declinou bastante após a eleição de 2018.

Os evangélicos odeiam os índios e desprezam os negros. A intolerância politizada deles está provocando uma regressão evidente. Esse fenômeno pode ser medido pela chacina recente que ocorreu no Rio de Janeiro.

A pena de morte é expressamente proibida, mas essa proibição se tornou irrelevante. Os policiais bolsonaristas e evangélicos são impulsionados pelo ódio racial, social e também religioso. Eles acreditam que estão fazendo o trabalho de Deus e que suas vítimas são apenas criaturas desprezíveis indignas de direitos humanos. Isso para não mencionar aqueles que matam porque passaram a gostar de fazer isso.

Antes de prosseguir, sugiro ao leitor duas cenas de filmes referentes a situações diferentes. Uma delas retrata um fato histórico; a outra refere-se a uma situação fictícia muito improvável.

A missão (1986): no período colonial autoridades católicas debatem se os índios do Novo Mundo tem ou não alma.

Blade Renner 2049 (2017): num futuro distópico, a chefe de polícia diz ao policial replicante que ele está se dando muito bem porque não tem uma alma.

Os policiais brasileiros não são replicantes nem índios, mas tem sido ideologicamente programados para matar como se suas vítimas não tivessem alma ou como se eles mesmos fossem desalmados. Nosso presente deveria ser guiado pelos princípios da Constituição Cidadã, mas foi sendo lentamente transformado numa versão 2.0 do passado colonial ou numa autêntica reprodução do futuro distópico.

Não sabemos o que os policiais fazem entre uma chacina e outra. Talvez esse seja o maior problema. Mas nós sabemos como o TJRJ tem incentivado a letalidade policial ao relativizar o direito a vida e a proibição constitucional da pena de morte. Apenas num caso aquele Tribunal reagiu demonstrando repugnância ao crime de sangue cometido por policiais: o da juiza que foi assassinada a tiros.

Quem são os juízes e juízas cariocas? Eles são descendentes dos colonos brancos livres ou dos índios, negros escravos e mamelucos? Essas perguntas são apenas retóricas, é claro. Na meritocracia brasileira, os acesso aos cargos judiciários sempre foi um privilégio racial daqueles que tem acesso à educação universitária.

Wilson Witzel não foi afastado do poder porque mandou os policiais do Rio de Janeiro atirar nas cabecinhas dos moradores das favelas. Rafael Braga Vieira foi condenado à prisão porque portava substâncias explosivas que paradoxalmente não podiam explodir ou ser usadas na confecção de explosivos. Qual deles não é branco?

Na distopia judiciária racista brasileira não pode existir espaço para a Justiça. É por isso que os Blade Runners cariocas continuarão matando pessoas de cor desumanizadas pelo TJRJ. A impunidade deles é garantida.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Fábio de Oliveira Ribeiro

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