Destaque Secundário

A união da sociedade civil pelo despejo zero na pandemia, por Júlia Pereira

da BrCidades

A união da sociedade civil pelo despejo zero na pandemia

por Júlia Pereira

9.156. Esse foi o número de famílias brasileiras removidas de suas casas desde o início da pandemia de Covid-19, de acordo com o levantamento realizado pela Campanha Despejo Zero*.

Ficar em casa não faz parte da realidade dessas famílias. São milhares de pessoas que têm suas vidas em risco já que não podem seguir uma das principais medidas de prevenção à infecção pelo coronavírus: o isolamento social.

Por outro lado, outras famílias puderam comemorar os 31 casos de remoções suspensas. Essa vitória só foi possível devido à mobilização de atores da sociedade civil, que, desde o início da pandemia, pressionaram e continuam pressionando o poder público para impedir que famílias sejam removidas de suas casas e tenham suas vidas cada vez mais expostas ao coronavírus.

O Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) se soma às entidades e movimentos, e trabalha, incansavelmente, por meio de mobilização e atuação política pelo direito à moradia. Foram diversas vitórias já alcançadas de norte a sul do país pelo fim dos despejos e a favor da vida das famílias brasileiras.

VITÓRIAS PELO BRASIL

Os frutos da atuação dos movimentos que lutam pelo direito à moradia já podem ser colhidos em alguns estados, como São Paulo e no Pará.

No Norte, a vitória na luta pelo fim dos despejos durante a pandemia foi comemorada em janeiro deste ano, quando o governador Helder Barbalho (MDB) sancionou a lei nº 9.212/2021. O texto determina a suspensão do cumprimento de medidas judiciais, extrajudiciais ou administrativas que impliquem em despejos, desocupações ou remoções forçadas, em imóveis públicos e privados que sirvam de moradia ou de meio de subsistência em razão do estado de calamidade pública, garantindo a manutenção da moradia à população vulnerável e o acesso aos serviços básicos essenciais para a sobrevivência, como energia elétrica e saneamento básico.

O Projeto de Lei foi apresentado pelo deputado estadual Carlos Bordalo (PT), também presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Pará. Segundo Juliana Oliveira, Conselheira da Regional Norte do IBDU, antes mesmo da aprovação do texto, o deputado já vinha articulando junto às instituições do sistema de Justiça e do Executivo estadual a implementação de medidas garantidoras de direitos humanos nos conflitos fundiários coletivos rurais e urbanos. “Diversas entidades da sociedade civil vinculadas à luta pelos direitos humanos, em especial do direito à moradia, como o IBDU, fomentaram a resistência para retirar da invisibilidade as violações de direitos humanos que vinham ocorrendo antes e no contexto da pandemia, e iniciaram o processo de luta pela suspensão dos despejos como medida de contenção da transmissão do vírus da Covid-19. Essa articulação de todos fortaleceu o processo para aprovação da lei”, explica Juliana.

Já em São Paulo a vitória é mais recente. A Assembleia Legislativa do Estado aprovou, no dia 22 de abril, o PL 146/2020, de autoria dos deputados Leci Brandão (PCdoB), Dr. Jorge do Carmo (PT) e Maurici (PT).

Para entrar em vigor, o projeto ainda precisa passar pela sanção do governador João Doria (PSDB), mas a aprovação na Casa Legislativa já é comemorada pelos movimentos sociais.

Benedito Roberto Barbosa, o Dito, articulador da Campanha Despejo Zero e associado do IBDU, explica a importância da mobilização da sociedade civil para a aprovação do projeto. “O PL 146/2020 tem um papel fundamental na mobilização dos protagonistas na luta pelo despejo zero. Aqui em São Paulo, desde o ano passado, o projeto já tramitava na Assembleia Legislativa e nós tomamos conhecimento quando ele chegou na comissão para o processo de votação. A visibilidade da campanha pelo despejo zero possibilitou essa aproximação com os deputados e a mobilização na reta final da aprovação do projeto”, ressalta Dito.

A JUSTIÇA PELO DIREITO À MORADIA

Não são apenas os poderes Legislativo e Executivo que têm atuado na suspensão dos despejos pelo país. No estado do Paraná, por exemplo, o cumprimento de reintegrações de posse em ocupações urbanas ou rurais foram suspensas durante a pandemia após um decreto do Judiciário.

Para Thiago A. P. Hoshino, Conselheiro da Regional Sul do IBDU, o decreto é de fundamental importância porque reconhece a pandemia não só como uma crise sanitária, como também econômica e política. “Muitas famílias deixaram de ter capacidade financeira para pagar aluguéis e passaram a ingressar em áreas de ocupação. Além disso, o decreto judiciário também permite o reconhecimento político do tema dos conflitos fundiários como merecedor de uma atenção especial, sobretudo os conflitos de caráter coletivo como merecedores de uma reflexão particular de política pública”, diz.

O decreto tem um marco temporal, ou seja, o ato se aplica para ocupações realizadas anteriormente ao início da pandemia de Covid-19 e não abrange todas as comunidades ameaçadas de despejo no Paraná. Apesar da exceção, o Conselheiro do IBDU observa que, em alguns casos, os juízes e juízas do estado têm decidido aplicar as regras do decreto dadas as circunstâncias, o contexto da pandemia e os impactos dos despejos na vida das famílias que são removidas de suas casas.

“De fato, ainda há muito para avançar no tema dos conflitos fundiários, nos temas da proteção judicial e extrajudicial, no tema das políticas públicas de habitação e regularização fundiária. Porém, essas medidas que vêm sendo experimentadas podem inspirar o Poder Judiciário de outros estados a também fazerem como o Tribunal de Justiça do Paraná fez, não só com o decreto, como também endossando a recomendação do Conselho Nacional de Justiça para a suspensão dos despejos nesse período tão grave da história brasileira e mundial”, afirma.

O DIÁLOGO NA LUTA PELA MORADIA

Desde o início da pandemia até fevereiro deste ano, 80 famílias baianas foram removidas de suas casas, enquanto outras 2.746 correm o mesmo risco. Foi essa realidade que motivou o deputado estadual Hilton Coelho (PSOL) a apresentar, em novembro de 2020, o Projeto de Lei nº 24.019/2020, também chamado de “PL Despejo Zero”.

O texto tem por finalidade impedir a proposição de ações e a execução de mandados de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais na Bahia em face de ocupações de movimentos sociais e grupos formados por população de baixa renda, no campo e na cidade, enquanto durar a pandemia causada pela Covid-19.

O texto do projeto é resultado da atuação do IBDU e da Articulação do Centro Antigo de Salvador, que promovem a campanha Despejo Zero no estado. “Junto com a sensibilidade e compromisso do mandato do deputado Hilton Coelho, o IBDU e a Articulação do Centro Antigo de Salvador são componentes fundamentais dessa luta coletiva em busca da suspensão dos despejos no Estado da Bahia, sendo reconhecidos na justificativa do Projeto de Lei. Nesse momento de tamanha incerteza e de completa ausência do Poder Público, são essas entidades que têm defendido o direito à moradia e, acima de tudo, o direito à vida da população que necessita ocupar para ter um teto”, comenta Gilson Santiago, associado do IBDU.

No dia 20 de abril, a Comissão de Direitos Humanos e Segurança Pública, a Comissão Especial de Desenvolvimento Urbano e a Comissão Especial de Promoção da Igualdade Racial da Assembleia Legislativa da Bahia realizaram uma audiência pública para discussão do PL Despejo Zero.

Gilson, que representou o IBDU na audiência, destaca a importância da discussão do Projeto de Lei junto à sociedade civil e aos demais atores envolvidos nos conflitos resultantes dos despejos. “São as falas de moradores de ocupações, que se viram constantemente ameaçados de despejo durante a pandemia, que escancaram uma realidade ignorada por muitas pessoas. São famílias inteiras que, além de terem se visto mais pobres em função da crise, se veem cotidianamente com o medo de perderem o teto, de perderem seus bens, de serem deslocadas sem qualquer perspectiva de alocação por parte do Poder Público”, diz.

QUANDO A LEI NÃO BASTA

A lei nº 6.657/2020, de autoria do deputado Fábio Félix (PSOL), estabelece diretrizes para a criação do Plano Emergencial para Enfrentamento da Covid-19 nas periferias do Distrito Federal. O segundo artigo do texto afirma o direito ao isolamento social em domicílio e compreende “a proibição de remoção de ocupações e a efetivação de ordem de despejo, desde que a posse tenha se iniciado antes da declaração da emergência de saúde de importância internacional”.

Apesar da aprovação da lei em agosto do ano passado, os despejos continuam fazendo parte da realidade do DF. Exemplo disso é o que acontece na ocupação CCBB. Em uma manhã de abril, 38 famílias acordaram com tratores derrubando suas casas. Foi a terceira remoção que a ocupação sofreu desde o início da pandemia.

“Esses despejos são completamente ilegais. Além de estarem em desconformidade com essa lei distrital, estão em desconformidade também com todas as orientações internacionais que recomendam que os despejos sejam paralisados”, observa Sabrina Durigon Marques, Conselheira da Regional Centro-Oeste do IBDU.

Em julho de 2020, a situação dos despejos no Brasil virou pauta na agenda mundial, quando o relator especial da ONU sobre o Direito à Moradia Adequada, Balakrishnan Rajagopal, publicou uma nota pedindo ao governo federal a suspensão de tais remoções em face do avanço da pandemia no país.

 “O Brasil tem o dever de proteger urgentemente todas as pessoas da ameaça da Covid-19, especialmente as comunidades em risco. A pandemia já afetou mais de 1,5 milhão de pessoas no país e matou mais de 65 mil”, disse Balakrishnan Rajagopal.

“No comunicado, o relator da ONU reforçou que a medida serviria tanto para ações judiciais quanto extrajudiciais, e grande parte dos despejos atualmente tem sido feito de maneira extrajudicial, ou seja, você não tem nem a possibilidade de fazer a sua defesa em juízo. É impossível você manter quarentena e isolamento sem alternativas de acomodação e de abrigo”, diz Sabrina.

* Sistematização de 1 de março de 2020 até 11 de fevereiro de 2021.

Júlia Pereira é jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero e coordenadora de Comunicação do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) e colaboradora da Rede BrCidades

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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