Destaque Secundário

Biles, a ginasta que ganhou ao desistir da competição, por Mariana Nassif

Nesta semana olímpica a desistência da ginasta Simone Biles de concorrer à medalha de ouro na individual geral e outras provas trouxe à tona a temática da saúde mental, especialmente questões relacionadas à pressão sofrida pelos atletas, todos eles. Outra pauta relevante, entretanto, chama atenção, embora não seja abordada com o mesmo holofote pela grande imprensa: o abuso sexual sofrido pela ginasta, vítima do médico Larry Nassar – a atleta é a única em atividade dentre as 150 (isso mesmo: cen-to-e-cin-quen-ta) pessoas que tiveram sua infância e adolescência ceifadas por ele.

É importante saber que para além daquilo que é conhecido sobre este tipo de abuso – monstruoso, destruidor, bastante comum – existe um fator determinante para a dissolução da estima profunda no ser abusado: o silêncio que contorna o tema. Há anos estudo sobre abuso e me aproximo cada vez mais das origens doloridas de feridas incuráveis (embora “cuidáveis”) e quase nada é mais avassalador do que a permanente sensação de que a culpa é de quem foi violado, já que quase nunca podemos falar sobre isso sem os olhos alheios contorcerem-se. Abusar é normal. Falar sobre, nem tanto.

Enquanto nossas inquietações “devem” ter lugar para acontecer (o ambiente terapêutico, quase que exclusivamente), o abusador é protegido pelo silenciamento porquê, oras bolas, têm família e filhos, como no caso de Larry – então melhor não comprometê-lo, não é mesmo?! (contém toda a minha ironia, que não é pouca).

Enxergo, e não sou só eu, o patriarcado como grande responsável pelo comportamento, tanto do abuso quanto do silêncio: enorme parte dos casos acontece contra o gênero feminino e/ou têm associação com características afeminadas nos meninos (“fiz pra que virasse homem”, contou um pai que abusou do filho que dizia achar “um bichinha”). Na faixa de 0 a 9 anos, as meninas representam 78% das vítimas, enquanto entre os 10 e 19 anos são alarmantes 97%. Para todos, porém, existem importantes consequências também psíquicas que derivam do acontecimento.

As sequelas da violação infanto-juvenil no aspecto sexual passam por dissociação (por motivos óbvios, aprendemos a sair do corpo pra dar conta de viver a experiência: o cérebro nos protege e, em muitos casos, apaga inclusive a memória sobre o ocorrido); sentimentos extremos; instabilidade nos relacionamentos; medo de abandono; falta de estima profunda; problemas de imagem e, evidente, dificuldade de confiar – e também o silêncio, certamente imposto pelo esquema patriarcal, que defende a instituição familiar de forma a proteger seus arrimos, comumente os homens (sim, são familiares os maiores responsáveis pelo abuso sexual infantil, estatisticamente), e a culpabilizar a figura pecadora/assanhada, a mulher, ainda que uma menina. Você já parou pra pensar em como, desde que o mundo é mundo, amadurecemos as meninas de forma a serem boas mulheres e, ainda, que esta produção sempre, sempre, sempre tem relação com um ideal de beleza físico? Não vai ser agora, mas pretendo explorar com veemência que a primeira violação de quase toda garotinha é ter a orelha furada ainda na maternidade. Desculpa, filha, eu não sabia.

Então, enquanto a maior parte da imprensa e das pessoas dialoga sobre a coragem em desistir mediante questões de saúde mental geradas pela pressão do esporte, quem carrega o peso do abuso sabe que, antes de mais nada, o custo vital que existe em chegar onde Biles chegou já é louvável, admirável, potente e, não menos importante e provavelmente fundamental como os processos terapêuticos insistem em  apontar, escolher-se, cuidar-se e se preferir bem frente a toda e qualquer outra situação é uma das maiores vitórias, e dá o recado: estamos mudando, de fato, e não vamos mais entregar medalhas sujas de machismo pro mundo, podem se acostumar e, no que depender de mim, ainda vamos falar muito sobre isso.

Mariana A. Nassif

Mariana A. Nassif

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