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Celso Furtado, Roberto Simonsen e Delfim Neto escreveram História, por que não eu?, por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Celso Furtado, Roberto Simonsen e Delfim Neto escreveram História, por que não eu?

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Considero-me economista em primeiro lugar mas, para meu doutorado em História Econômica, não bastava saber história, era preciso aprender a fazer História. Não obstante a especialização, economistas relacionam-se diuturnamente com ela, seja nos aspectos filosóficos da economia como ciência, que é a História do Pensamento Econômico, seja na evolução da vida material das civilizações, no que se conhece por História Econômica. Entender o passado é fundamental para compreender o mundo à nossa volta. Por isso, não raro, economistas fazem História, como Celso furtado, Roberto Simonsen, Delfim Neto e Bresser Pereira. Pode-se dizer que todo historiador tem um quê de economista e vice-versa. Em ambos casos, há que se estabelecer uma especialidade porque o mundo é muito grande e a humanidade muito antiga. A minha é Brasil do século XX. Isso implica em não ser ignorante acerca do precedentes, muito menos do que está fora da área de estudo. Exemplo disso é o cangaço.

Ele foi erroneamente atribuído ao Nordeste, entre a segunda metade do século XIX e a primeira do século XX. Lá, ele teria começado na metade do século XVIII com José Gomes, o Cabeleira, passando por outros famosos como Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino e Sinhô Pereira, até chegar a Lampião e Corisco, quando se crê que, graças à determinação de Getúlio Vargas, esse movimento teria sido extinto. Érico Veríssimo, em Ana Terra, descreve o assalto dos Orientais à casa da protagonista como um ato típico do cangaço, praticado contra os colonizadores açorianos e paulistas do Rio Grande do Sul. As atitudes de Januário Garcia Leal, o Sete Orelhas, entre Minas e São Paulo, na virada do século XVIII para o XIX, também não diferiam dos atribuídos a cangaceiros. O mesmo se pode dizer das andanças do bando de Riobaldo pelo Cerrado Mineiro e Goiano, como descreveu Guimarães Rosa. Ficção em algumas obras, história romanceada em outras, pode-se inferir que o cangaço não nasceu no Nordeste e nem começou no fim do século XIX. Também não dá para crer que tenha findado com a Grande Entrega ocorrida entre 1939 e 1940 quando a morte de corisco motivou muitos bandos a depor armas em busca de anistia.

O cangaço diferencia-se do terrorismo por não ter um fim específico, como ocorreu com os zelotes dos tempos de Cristo, o Sendero Luminoso, o Tupacamaru, como Estado Islâmico, entre outros. O cangaço é um meio de vida. Numa entrevista de 18 de março de 1926 ao “O Ceará”, Lampião, quando perguntado se abandonaria o cangaço, respondeu como qualquer empresário: “Por que largar tudo se está dando certo?” Para ele, contavam as joias, o ouro enterrado, os perfumes, e os bens de luxo que só cabiam numa vida sabidamente curta. Dividia-se em subgrupos para que abrangessem o maior território possível. Eram jagunços terceirizados, desobrigando os coronéis de sustentar os próprios, bastando armar e municiar o bando, além de escondê-los em suas terras vez por outra. Para o povo, posavam de Robin Hood, distribuindo dinheiro aos mais necessitados, em troca de silêncio, tudo numa rede de proteção a que chamavam coito. Resumindo, extorquiam, roubavam, matavam e estupravam e manipulavam a população atribuindo-se ares de heróis.

Há quem compare às milícias de hoje. É mais profundo. As milícias mais parecem os subgrupos, cuja função é garantir território e se sustentam dos achaques, das mortes encomendadas, da associação com o tráfico de drogas, tudo em nome de uma pseudo moralidade, duma meritocracia canhestra, de uma falsa religiosidade. A exemplo dos jagunços, trabalham, desta vez, para grandes grupos, ora privatizando, ora passando a boiada. Hoje, reservam-se as armas físicas às milícias, enquanto se combate com redes sociais, lacrando, cancelando, expondo, num efeito muito mais devastador do que se consegue com metralhadoras, granadas, até canhões. O coito atual representa-se pelas empresas de comunicação, ora pertencentes ao mercado financeiro, ora ligadas a falsas igrejas evangélicas com sua teologia da prosperidade, atribuindo qualidades messiânicas aos seus dirigentes. Sair disso é um processo, que só terá êxito com um Estado forte e capaz de impor regras de convívio social, o que o impede de ser mínimo e o afasta do vassalo que é hoje.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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