Destaque Secundário

EUA x China: o jogo Poker planetário começou, por Fábio de Oliveira Ribeiro

EUA x China: o jogo Poker planetário começou

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Semana passada, o conflito diplomático entre EUA e China atingiu um ponto de quase ruptura https://brasil.elpais.com/internacional/2021-07-26/china-acusa-eua-de-manterem-politica-extremamente-perigosa-e-diz-que-relacao-esta-em-ponto-morto.html. Caso isso ocorra será inevitável o prejuízo para os dois países, que enriqueceram muito com a parceria iniciada quando Nixon resolveu aproveitar o conflito sino-soviético para se aproximar dos chineses. 

O nascimento, crescimento e maturidade do que o professor Niall Ferguson denominou Chimerica https://en.wikipedia.org/wiki/Chimerica ocorreu durante o declínio da URSS. No último documentário da série “A ascensão do dinheiro” (2008) ele destrinchou esse fenômeno e alertou que o divórcio  poderia não ser amigável https://www.youtube.com/watch?v=eDOpTbuIVsY

Donald Trump também hostilizou bastante a China. Mas o que no caso dele era apenas excesso verbal (provavelmente visando conquistar melhores condições para um acordo), no caso de Joe Biden parece estar se tornando algo mais profundo e obviamente perigoso. Os norte-americanos não querem abrir mão de uma posição que já perderam. E os chineses obviamente não deixarão de traçar uma linha vermelha cuja violação significará a substituição da diplomacia pelo uso da força.

Não por acaso é possível comparar a ruptura da Chimerica ao que ocorreu entre Alemanha e Inglaterra pouco antes da II Guerra Mundial. Alguns analistas também comparam as relações entre Washington e Pequim ao conflito que devastou a civilização grega e acarretou o declínio das cidades estados. Refiro-me obviamente à Guerra do Peloponeso.

Tucídides afirma que Esparta atacou Atenas porque começou a ficar com receio do crescimento do poderio ateniense. Os norte-americanos já não escondem o temor diante do colosso econômico, diplomático e, eventualmente, militar que eles mesmos ajudaram a construir porque desejavam sobrepujar a URSS. 

Apesar de sua fragilidade econômica, a Rússia restabeleceu sua capacidade de projetar poder militar e tem usado as aporias da Chimerica para se consolidar como um jogador na arena internacional. O Kremlin vinha tentando oscilar entre China e EUA, mas ficou mais e mais próximo dos chineses. 

Os norte-americanos têm deslocado tropas e equipamento militar para a Europa, algo que incomoda muito a Rússia. Eles também tem continuamente provocado Pequim no Mar da China. Mas é difícil dizer se os EUA realmente poderiam enfrentar militarmente China e Rússia ao mesmo tempo. Nesse caso o teatro de operações seria na Ásia, na Europa, mas também nos oceanos e eventualmente no próprio território norte-americano. A missão do Brasil em caso de guerra somente poderia ser manter a neutralidade. Mas não é disso que pretendo falar aqui. 

O que me chamou atenção foi o fato dos chineses terem dito que Joe Biden usa a China para criar uma espécie de sensação de propósito entre os norte-americanos. Antes de entrar na I Guerra Mundial, o propósito da civilização norte-americana era se devotar apenas aos negócios. Isso explica a força do isolacionismo. O propósito dos EUA ao entrar na II Guerra Mundial era sair dela como indiscutível potência mundial. Isso de fato ocorreu, mas para a surpresa dos norte-americanos a URSS não foi totalmente destruída pela máquina de guerra nazista (algo que ocorreu com a Europa). 

O esgotamento do imperialismo inglês e francês, em parte resultante pelo estrago econômico causado pela guerra na Europa, elevou os EUA à condição de líder do Ocidente (qualquer que seja o significado disso). O sucesso na II Guerra Mundial e o subsequente conflito diplomático/ideológico com a URSS proporcionaram aos norte-americanos uma grande coesão social e um sentido de propósito nacional que se dissolveu com a queda do Muro de Berlim e a desagregação do Pacto de Varsóvia. 

A predominância dos negócios como de costume foi muito abalada pela crise de 2008, cujos efeitos sociais ainda se fazem sentir nos EUA. Elevar a China à condição de arqui-inimigo é tentador, mas o resultado pode não ser exatamente aquele que os norte-americanos desejam. Afinal, os chineses têm algo que os russos não tinham: grande dinamismo econômico e um profundo sentido de identidade cultural.

Além de marcar a China como alvo na Terra, a Casa Branca parece ter voltado a tratar o espaço como uma última fronteira. Isso ocorreu na década de 1960, mas dentro de um contexto totalmente diferente. Naquela época, o programa espacial do governo norte-americano visava, entre outras coisas, desenvolver novos mísseis capazes de transportar ogivas nucleares até a URSS. Na atualidade, o espaço é visto como uma oportunidade para novos negócios e a Casa Branca está apenas seguindo um objetivo que já havia sido estabelecido por empresários.

Nesse sentido, nunca é demais citar o que foi dito por autor norte-americano na década de 1970.

“If the United States is currently involved in a war to remake our domestic society, then the prerequisites for its successful conduct are the definition of the purpose of the struggle, and the establishment of goals and criteria for measuring victory. When such a political or ideological framework is in place, business can work efficiently within it. But for unelected businessmen to suppose that they can erect such a framework suggests anarchy. They have neither the right nor the competence to do so.” (The New American Ideology, George C. Lodge, Alfred A Knopf Inc., New York, 1975, p. 190)

Tradução: “Se os Estados Unidos estão atualmente envolvidos em uma guerra para refazer nossa sociedade doméstica, os pré-requisitos para sua conduta bem-sucedida são a definição do propósito da luta e o estabelecimento de metas e critérios para medir a vitória. Quando essa estrutura política ou ideológica está em vigor, os negócios podem funcionar com eficiência dentro dela. Mas o fato de homens de negócios não eleitos suporem que podem erguer tal estrutura sugere a anarquia. Eles não têm o direito nem a competência para o fazer.”

O espaço será capaz de mobilizar os corações e mentes dos norte-americanos desempregados, famintos e sem esperança de recolocação num mercado de trabalho que está encolhendo na mesma proporção que a automação cresce em todos os setores da economia dos EUA? Por outro lado, a invasão do Congresso dos EUA por hordas trumpistas, fato que provocou um verdadeiro terremoto político em Washington, não pode ser creditado à China. O que ocorreu pode ser considerado o sintoma de uma sociedade que alcançou seu apogeu e entrou em declínio.

Os EUA estão se tornando um país incapaz de reconquistar o senso de unidade e de propósito nas próximas décadas? Responder essa pergunta não é uma tarefa fácil.  Todo artifício político-ideológico encontra seus limites na realidade. Por outro lado, como disse  George C. Lodge os homens de negócios não estão em condições de realizar aquilo que somente os estadistas têm competência para fazer. 

A questão central, porém, pode ser outra. O problema é que o neoliberalismo, ao qual Joe Biden está se rapidamente se rendendo, não permite que o Estado recupere o controle da economia e, principalmente, da política. Portanto, nesse jogo de Poker em escala planetária, a China tem a melhor mão. E continuará tendo a melhor mão enquanto os chineses não cometam o erro de acreditar que as soluções militares são melhores do que a simples distribuição de dinheiro entre seus aliados nos EUA. Por enquanto, a Casa Branca está fadada a continuar blefando.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Fábio de Oliveira Ribeiro

Fábio de Oliveira Ribeiro

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