Israel e o mito da “única democracia” do Oriente Médio, por Sayid Marcos Tenório

Retratar Israel como uma ilha de democracia cercado por regimes autoritários, não passa de cortina de fumaça para esconder e perpetuar um estado que não respeita o Direito Internacional e ampliar o regime de apartheid que nega direitos aos palestinos

Reprodução Redes Sociais

Israel e o mito da “única democracia” do Oriente Médio

por Sayid Marcos Tenório

É comum ver os apologistas de Israel retratando o estado judeu como “a única democracia” do Oriente Médio, uma espécie de oásis de democracia num deserto autoritário e ditatorial, uma democracia no estilo ocidental assentada em valores democráticos liberais e da herança judaico-cristã que Israel compartilha com as democracias liberais do Ocidente.

Tais afirmações não passam de uma cortina de fumaça para esconder a exclusividade étnico-religiosa judaica inerente à ideologia racista sionista, as desigualdades estruturais e as práticas discriminatórias que o Estado de ocupação israelense realiza contra seus cidadãos não judeus.

Um apartheid consolidado pelo parlamento israelense

Desde a declaração de independência, em 14 de maio de 1948, Israel dispensou um tratamento diferenciado aos palestinos no novo Estado, através da adoção de pelo menos 60 legislações discriminatórias em favor da população judaica, em detrimento da não judaica, conferindo aos árabes – cristãos e muçulmanos – uma condição diferenciada, tornando-os cidadãos de segunda classe na sociedade israelense. Desde 1948, esses cidadãos sofrem restrições democráticas observadas em outras regiões do mundo, como dos direitos de mobilidade, reunião, expressão e manifestação.

Uma das primeiras legislações aprovadas pelo parlamento do recém-criado Estado de Israel (Knesset), em 1950, foi a Lei do Retorno, que permite a qualquer judeu, de qualquer parte do mundo, o direito de imigrar para Israel e tornar-se cidadão com plenos direitos. A mesma legislação barrou o direito dos palestinos atingidos pela Nakba regressarem às casas de onde foram expulsos desde 1948. No dia 6 de maio deste ano, o Knesset revogou a lei segregacionista que os sionistas denominavam de Lei da Cidadania, segundo a qual o cônjuge árabe que optasse por viver em Israel teria que renovar todos os anos o pedido de residência temporária.

Duas outras legislações draconianas são a Lei do Knesset e a Lei da Reunificação Familiar. A primeira, Lei do Knesset, aprovada em 1958 e alterada em 1985, estabelece o impedimento de candidatura ao parlamento de qualquer candidato que negue a essência judaica do Estado de Israel. É evidente que essa legislação visa impedir candidatos palestinos e antissionistas, além de estabelecer uma cláusula de barreira de 3,5% de votos para o partido eleger deputado para o Knesset.

A segunda, a chamada Lei da Reunificação Familiar, de 2003, impossibilita cidadãos de Israel de conviver com seus cônjuges oriundos dos territórios palestinos ocupados da Cisjordânia ou Gaza, mas permite que os cidadãos judeus possam viver em Israel com seus cônjuges estrangeiros.

Não foi à toa que, em 19 de julho de 2018, o Knesset aprovou a chamada Lei Básica do Estado-Nação, por meio da qual Israel passa a ser legalmente um Estado exclusivo para judeus. A adoção dessa legislação discriminatória representou uma vitória da extrema-direita sionista que governa Israel e uma derrota do resto do mundo, onde não há nenhum precedente dessa natureza, além de contrariar a quase totalidade dos países membros da Organização das Nações Unidas, que reconhece o direito dos palestinos ao seu estado independente e soberano.

Etnocracia israelense é o oposto de uma democracia

Como podemos observar, o chamado Estado de Israel é o oposto de uma democracia, sendo na verdade uma etnocracia – muito embora judeus não constituam um grupo étnico, mas seguidores da fé judaica – que incorpora alguns elementos de uma democracia liberal ocidental, como eleições e sistemas de votação, pluralidade política, imprensa livre e até reconhecimento das relações homoafetivas.

Etnocracia é um regime que surge quando membros de um determinado grupo étnico-nacional – os judeus no caso de Israel, os brancos na África do Sul do apartheid ou os supremacistas brancos cristãos nos EUA – assumem o controle do governo e das forças armadas para impor um regime de exclusividade e privilégio sobre outros grupos étnicos ou religiosos, sobre o que é de fato uma sociedade multiétnica ou multireligiosa.

Ao contrário das democracias liberais dos EUA e da Europa Ocidental, nas quais um modelo de nacionalismo civil e democracia inclusiva é implementado, Israel continua ligado a um paradigma nacionalista étnico em que o país não pertence a todos os seus cidadãos, mas a um particular grupo étnico-religioso.

A proclamação de Israel como “Estado judeu” é um absurdo, na melhor das hipóteses, e racismo, na pior. Imagine se a Inglaterra ou os EUA decidissem se chamar “Estado Protestante”, tornando automaticamente todos os não protestantes cidadãos de segunda classe, negando-lhes plena cidadania e direitos? É isso o que acontece com Israel.

Os árabes palestinos que vivem em Israel, ao receberem cidadania israelense, tecnicamente desfrutam de algum nível de liberdade de língua, religião e cultura e têm direito a voto e representação no Parlamento de Israel. Apesar de uma fachada de governança democrática, Israel continua a negar aos seus cidadãos árabes direitos políticos iguais, discriminando-os em diferentes esferas, como cidadania, saúde, educação, casamento, financiamento municipal, habitação, propriedade da terra etc.

Embora essa população árabe tenha participação em partidos no âmbito da configuração política israelense e tenha conseguido eleger representantes para o Parlamento, eles não chegam a ter influência relevante sobre o estado. Nenhuma decisão do governo é considerada legítima a menos que goze de uma “maioria judaica”, ou seja, do apoio da maioria dos judeus no Parlamento ao invés do de uma maioria parlamentar, porque isso requer considerar os votos dos parlamentares árabes.

Que democracia é essa que se vale do poderio militar e da omissão dos organismos internacionais para perpetuar um estado que não respeita o Direito Internacional, que não dispõe de uma Constituição e em que a base jurídica da autoridade estatal é um conjunto de “leis básicas” que tratam de diversos ramos jurídicos sem fronteiras definidas? Que democracia é essa na qual a base jurídica é alterada sempre que os dirigentes da ocupação acham necessário, no sentido de ampliar o regime de apartheid e a negação dos direitos dos palestinos?

Sayid Marcos Tenório é historiador e especialista em Relações Internacionais. É vice-presidente do Instituto Brasil-Palestina (Ibraspal) e autor do livro Palestina: do mito da terra prometida à terra da resistência (Anita Garibaldi/Ibraspal, 2019. 412 p). E-mail: [email protected] Twitter: @HajjSayid

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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