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O choque de civilizações, ou também, como achar um inimigo quando o outro desaparece (I), por Rogério Maestri

O choque de civilizações, ou também, como achar um inimigo quando o outro desaparece (I)

por Rogério Maestri

Quando ao ler um artigo que nem sei mais a onde foi me deparei com a surpreendente frase do presidente do Grande Imperio do Norte que disse: “Tentamos levar a democracia, mas nenhum império conseguiu unificar o Afeganistão!”. Essa frase foi dita quando os USA continuam a retirar suas tropas daquele país, pois depois de duas décadas não conseguiram sujeitar um povo que não aceita senhores. 

A frase é uma verdadeira obra prima de cinismo imperial, pois se ninguém consegue levar a “democracia” ao Afeganistão talvez não seria melhor perguntar: E eles querem a “democracia” liberal? Provavelmente não, mas tenho certeza que aparecerá alguém defendendo a intervenção dos países do primeiro mundo para levar a civilização aquele país, dizendo que lá as mulheres são obrigadas a utilizar Burca, ou segundo as leis islâmicas, são lapidadas quando traem seus maridos. Uma coisa é certa, a quantidade de mulheres mortas pelas bombas norte-americanas nos vinte anos de guerra, devem ter matado mais mulheres, seus filhos e demais parentes queridos do que em quatrocentos anos de maus tratos e apedrejamentos. 

As razões humanitárias não são o mote da intervenção dos Estados Unidos no Afeganistão, pois se eles fossem grandes humanitários poderiam pelo menos deixar de comprar petróleo e vender armas na Arábia Saudita que é a sua maior aliada de todos os países árabes e as lei são as mesmas que no Afeganistão. O que me interessa é comentar um livro editado nos USA há algumas décadas por um acadêmico norte-americano (1996), chamado Samuel Huntington intitulado “The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order”. Esse livro serviu de base teórica as centenas de milhares de mortes que ocorreram no Iraque, na Líbia, na Síria e no próprio Afeganistão, por conta de levar a “liberdade”, a “democracia” e os “direitos humanos” violando todos esses três princípios de forma descarada e criminosa, isso foi e ainda continua sendo feito pelos Estados Unidos e seus cãezinhos amestrados da OTAN. 

Para não achar que sou preconceituoso obrigando-me a citar Pierre Bourdieu em “O papel dos Intelectuais e dos conceitos” para demonstrar para o que serve parte da academia quando bem paga. Vou colocar uma parte do currículo de Samuel Huntington: Em 1968 ele escreveu um influente artigo no qual justificou o pesado bombardeio das áreas rurais do Vietnã do Sul como forma de impelir os defensores dos Vietcong para as cidades. Também de forma mais direta Samuel nos anos do apartheid participou dos serviços de segurança (Gabinete de Cooperação Civil) do regime racista da África do Sul. Após o fim do governo branco a comissão da verdade revelou que o GCC além de ser um serviço de espionagem era um serviço de execução (esquadrão da morte) do governo branco. Logo com esse currículo não é necessária muita sofisticação para dizer que ele era um intelectual a serviço do pior que gera o Imperialismo Norte-americano, logo não merece o meu mínimo respeito e consideração acadêmica. Mas, como o assunto é o livro e porque o título do artigo mereceu um subtítulo (Como achar um inimigo quando o outro desaparece), vou ter que falar algo sobre esse lixo intelectual que é essa obra.  

A base discursiva teórica é uma tentativa de desmanchar a concepção levantada por outro intelectual Francis Fukuyama, que também está ao serviço dos governos imperialistas, mas pelo que eu saiba aparentemente tem um currículo mais limpinho do que o de Samuel. 

Em 1992 com a queda do muro e o fim do governo da burocracia soviética, Francis Fukuyama, baseado num conceito de Hegel em que com o total domínio da democracia burguesa não haveria mais guerras entre as nações, ele escreve um artigo e por fim um livro denominado “The End of History and the Last Man” com a tese que chegado todo o mundo as democracias burguesas não haveria mais confrontos militares e a sociedade havia chegado ao seu supremo ápice, sendo que daí por diante o sistema capitalista traria felicidade e riqueza para todos e por isso as guerras terminariam e a história também. Apesar do livro de Fukuyama ser completamente irreal como previsão do futuro, a caricatura que faço do mesmo é um pouco exagerada, porém como o autor vem revisando aos poucos as suas teses, não fica tão ofensivo, porém volto a dizer, eticamente e moralmente Fukuyama acho que não desceu tão fundo como Huntington. 

As conclusões de Fukuyama do triunfo das democracias liberais aliadas a queda da União Soviética deixava um vazio de inimigos a enfrentar, com isso os orçamentos militares dos Estados Unidos diminuíram e poderiam seguir numa linha decrescente muito perigosa para a manutenção da indústria de armamentos, logo era necessário achar um inimigo rapidamente. 

No momento em que Samuel Huntington publicou o seu artigo na revista Foreign Affairs em 1993, foi um grande achado. No seu artigo ficava explícito, que como as guerras ideológicas terminaram, aparecia algo muito mais durável e dependendo do menu escolhido, muito mais tranquilo. O mundo ficaria reduzido a várias civilizações: a sínica, a nipônica, a hindu, a budista, a islâmica, a ocidental, a latino-americana, a ortodoxa e a subsaariana, e mais outros países que ficaria muito forçado coloca-los em grupos que deveriam ser humilhados no livro. Além da existência dessas civilizações praticamente estanques o livro postulava que obrigatoriamente haveria lutas nas regiões de contato dessas civilizações. Como os USA seriam os líderes da maior, mais civilizada, mais culta e mais limpinha dessas civilizações, a ocidental, ele poderia e deveria cumprir o papel de gendarme do mundo, eles levariam aos atrasados, não democratas, não amantes da liberdade e dos direitos humanos, a civilização a partir da melhor de todas, o que eles chamam “o destino manifesto”. Chamo atenção aos brasileiros que amam tanto a civilização ocidental é que segundo Huntington não estamos dentro dela, mas sim numa subespécie denominada latino-americana, que tem suas degenerações que impedem a chegar nos níveis dos ocidentais. 

Como o texto está longo e falta bastante para o seu fim, aguardem as próximas partes do “O choque de civilizações, ou como achar um inimigo quando o outro desaparece. (seguinte)”. Que como todo o bem seriado terá reviravoltas significativas nas próximas temporadas. 

Redação

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