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Obediência, cumplicidade e perversão alimentam a necropolítica, por Arnaldo Cardoso

Obediência, cumplicidade e perversão alimentam a necropolítica

por Arnaldo Cardoso

Ao completar sessenta anos do julgamento – iniciado em 11 de abril de 1961 – de Adolf Eichmann, um tenente-coronel, burocrata do aparato de segurança da Alemanha nazista, responsável pela logística da deportação de milhares de judeus para campos de concentração, temos sido instados a relembrar – por força das circunstâncias – suas perturbadoras revelações, particularmente aquelas decorridas da análise da filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) a partir de acompanhamento do julgamento como enviada da revista New Yorker a Jerusalém.

A tese de Arendt sintetizada no conceito de “banalidade do mal”, apesar das muitas críticas recebidas na época – por parecer relativizar a monstruosidade da ação de Eichmann – continua sendo invocada com frequência, diante da necessidade de iluminar/compreender situações do presente em que nos sentimos novamente lançados no coração das trevas.

A atual avassaladora pandemia que em pouco mais de um ano já causou a morte de 3 milhões de pessoas pelo mundo – 12% delas no Brasil – tem causado também horror, estupefação, revolta e desesperança em parte da população – do Brasil e do mundo – diante de atitudes de alguns governantes, lideranças políticas e sociais, empresários e cidadãos comuns, cujas nuances variam da obediência irrefletida à cadeias de comando, conivência pragmática ou ordinária, chegando à perversão.

O julgamento de Eichmann se estendeu por um ano, ouviu mais de 100 testemunhas, foi coberto por centenas de jornalistas paradoxalmente teve no banco do réu um homem mediano, um funcionário medíocre, incapaz de refletir sobre seus atos. Perfil obediente, sem iniciativa, sem senso de responsabilidade social, incapaz de empatia, são algumas das características com que Eichmann foi descrito pelos peritos. Em suas memórias se descreveu como “mero cumpridor de ordens superiores”.

Hannah Arendt, alemã, judia, fugida de campo de concentração em que teve seus pais executados, refugiada nos Estados Unidos onde desenvolveu profunda obra acadêmica repudiando todas as formas de totalitarismo, não viu em Adolf Eichmann um gênio do mal, viu um homem medíocre, incapaz de humanidade. Diante disto, o conceito de “banalidade do mal” passou a representar a mediocridade implícita na incapacidade de refletir, julgar em face de uma ordem produzida numa cadeia de comando.

Em seu livro “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal” Arendt apontou como ameaça às sociedades democráticas, a confluência da capacidade destrutiva e a burocratização da vida pública.

Também Max Weber (1864-1920), intelectual alemão que se notabilizou pelo desenvolvimento do método da compreensão, que busca apreender o sentido da ação humana, já havia alertado sobre os riscos da proeminência da ação de tipo racional com relação a fins, pelo quanto isso poderia representar o fim da espontaneidade, do sufocamento da política pela técnica.

É grave ter de reconhecer que a tenebrosa experiência alemã e mundial imposta pelo nazismo esteja sendo invocada com tanta recorrência e certa pertinência para lidar com nosso presente.

Como não se indignar com a fala de um Ministro da Saúde, alvo de críticas por incompetência diante da escalada de contágios e mortes, ao declarar descontraidamente “simples assim: um manda e o outro obedece”, ao lado do autor das ordens conflitantes com a realidade.

Se a leitura desse deprimente episódio nos remete às reflexões de Hannah Arendt sobre Eichmann, os outros casos com os quais fomos confrontados, como o do Secretário de Cultura plagiando estética nazista em comunicado à nação; auxiliares do governo participando alegremente de lives do Presidente da República com recorrentes símbolos nazistas como o copo de leite; o assessor especial para assuntos internacionais usando de linguagem cifrada de supremacistas brancos em audiência no Senado Federal, ou ainda manifestações espontâneas de empresários, lideranças religiosas e acadêmicas, bem como uma massa de “cidadãos de bem”, expressando entusiasmado apoio à performance daquele que é o personagem central de um inequívoco desgoverno, parecem escapar da formulação do conceito de “banalidade do mal” como foi formulado por Hannah Arendt para compreender o caso Eichmann. O que estamos vendo no Brasil parece variar entre formas de cumplicidade e adesão perversa, sem que haja uma organização burocrática ou mesmo uma ideologia arregimentando essa variedade de atores sociais.

Certamente há motivos para que a tentativa de encontrar modelos teóricos, conceitos e registros históricos que possam nos auxiliar na caracterização do que ocorre no Brasil, para além de reconhecer que sua ocorrência se dá num contexto mundial de reinvestidas da extrema direita, nos leve invariavelmente aos casos do fascismo italiano e do nazismo. Mas são muitas as diferenças e particularidades que escapam dos modelos.

Diante dessa falta do conceito, a adição de um adjetivo ao original pode provisoriamente conferir-lhe  especificidade, como discutido pelo historiador e doutor em Filosofia Rafael Zacca, no artigo de 2018 “A indigência do ‘fascismo tropical’”.

Num esforço de distinção, Zacca destacou as seguintes diferenças: i) “[para] a mentalidade histórica nazi-fascista a história (ainda que inventada e travestida de ciência) é importante na fundamentação dos símbolos nacionais a serem adorados pela população”, já para o “fascismo tropical” “o esquecimento é o cimento sobre o qual o autoritarismo pode se firmar”, ii) enquanto no fascismo e no nazismo a conclamação da nação é contra um inimigo externo, no “fascismo tropical” o inimigo escolhido é interno, e iii) quanto ao nacionalismo “é curiosa a posição dos fascistas tropicais: são nacionalistas e entreguistas ao mesmo tempo”.

Se dar o nome às coisas, já em 2018, se impunha como um passo importante para a compreensão do que se gestava no Brasil e assim orientar uma ação consciente para seu enfrentamento, os desdobramentos daquele momento nos dois últimos anos e a convergência da pandemia do coronavírus tornou tudo muito mais grave.

A dor hoje sentida pela morte dos mais de 350 mil brasileiros e brasileiras vítimas da Covid-19, já se prenunciava como marca de uma necropolítica que se instalava no país, de uma cultura de ódio e morte. Os assassinatos de Marielle Franco, Anderson Gomes e Moa do Katendê já eram sinais do que estava por vir.

No engrossar desse caldo de ódio e indiferença com a vida, em meio aos recordes diários de morte a sociedade brasileira hoje assiste às revelações da investigação em curso do assassinato de uma criança de quatro anos. Seu algoz é um médico, filho de militar aposentado já investigado pela Polícia Federal por envolvimento em corrupção, vereador da cidade do Rio de Janeiro em seu quinto mandato, ex-líder do governo do Bispo Crivella, apoiador enfático do governo Bolsonaro e que em suas comunicações sempre invocou o nome de Deus e um suposto “bem da nação”.

Há de se perguntar, que sociedade é essa tão vulnerável (ou seria simpática?) à apelos de atores tão vulgares?

Para a sociedade brasileira sair do abismo em que se lançou, a contenção do vírus SARS-CoV2 afirma-se como o passo mais urgente a exigir a soma de esforços e superação de obstáculos, mas é certo que os outros passos não serão menos difíceis e decisivos.

E.T.: O julgamento de Adolf Eichmann durou um ano e terminou com sua condenação à pena de morte por enforcamento. A execução aconteceu em 31 de maio de 1962. 

Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político

Redação

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