Pausa forçada pelo desespero de uma alma penada, por Sebastião Nunes

Meus amigos mortos são obrigados a interromper a análise do anúncio de venda do Rio de Janeiro pela súbita aparição de uma monstruosa criatura sofrendo horrível diarreia. E o pior: é uma diarreia sem cura e sem interrupção, por toda a eternidade.

Pausa forçada pelo desespero de uma alma penada

por Sebastião Nunes

Meditaram longamente os amigos sobre o anúncio proposto por Adão Ventura, publicitário porreta da velha guarda. Ainda que tenha precisado de milênios do tempo inexistente para amarrar as pontas soltas, Adão fizera do anúncio uma proeza de talento, concisão, humor e comunicação eficaz. Antigo sim, mas eficientíssimo, principalmente se pensado em termos de turismo sexual, pois era o que sugeria a senhorita de longas e grossas coxas, esbaldando-se nas águas turvas da praia de Copacabana.

Enquanto meditavam os amigos, Sancho reabriu, satisfeito, o embornal de dons, que fez circular, magnânimo. O que escolheu cada qual? Não importa, já que gostos não se discutem. Seria inesgotável o conteúdo do maravilhoso bornal? Sim, o que saía por cima entrava por baixo, num milagre digno dos mais reverenciados santos. Estarão os eventuais leitores de saco cheio de tanto abre-e-fecha? Sem dúvida.

Não houve, contudo, tempo para novas indagações ou aprofundamento na meditação. Do fundo misterioso, silencioso e tenebroso do bosque ergueu-se o lamento mais lastimável que ouvidos humanos terão, algum dia, escutado. Retiniam os tímpanos. Ribombavam as bigornas. Martelavam os martelos. Estrugiam os estribos. Etc.

LAMENTA-SE O INFELIZ

Na Divina Comédia, Virgílio amparava o poeta Dante. Nesta triste lengalenga, o inolvidável Sancho Pança acudia nossos amigos mortos, já que era indispensável ao duplo consolo: o do inesgotável farnel e o da presença constante na ausência de Gabriel Arcanjo, o nobre e fiel guia e conselheiro celeste, ou do porteiro celestial, o barbudo e solícito São Pedro. Estes, contudo, já eram, pelo menos por ora.

Abriu, portanto, o embornal, desculpem se etc.

Olharam em frente os amigos.

Escutaram.

E o que viram e ouviram foi o seguinte.

Sentado de pijama arriado num vaso sanitário velho, quebrado e sujo, macilento octogenário mantinha a cabeça apoiada no cano de descarga, os olhos arregalados, a boca aberta e o alento descompassado. Sugeria um morto semidespido.

Na cabeça, um quepe militar bordado, apesar de gasto e corroído pelos tempos (claro que inexistentes), inclinado para a direita e um tanto amarrotado. O tronco estava envolto em molambos de antigo uniforme de general, com dragonas e galões festivos e valorativos, sugerindo com certeza os mais elevados postos da hierarquia.

Fedia o semidefunto. Fediam os molambos. Fedia o entorno.

O semidefunto cagava. O semidefunto morreria cagando.

Mas, não. O semidefunto não morreria. Não podia morrer o semidefunto. Qual Sísifo, se repetia a si mesmo, morrendo a cada instante e a cada instante revivendo, para de novo morrer e mais uma vez ressuscitar. Em sua infinita performance morre-renasce, o velho, o velhíssimo, o matusalém se repetiria sem cessar e sem descanso.

Pasmos, vigiavam nossos amigos a trágica pantomima.

E gemia. E berrava. E se queixava. E era a voz miserável do mais miserável dos culpados de monstruosos crimes, pelos quais pagava, pelos quais não cessava de pagar, crimes tão imperdoáveis que sua monstruosidade clamava aos céus, soluçantes e cada crime por si, atropelando-se uns aos outros para gemer mais alto.

MORRER E RENASCER

Esse era, talvez, o fantasma que-não-podia-morrer-de-tanta-culpa-sedimentada, fantasma de um antipresidente funesto, capitão-monstro-de-culpas-eternas.

Mas, para quê? Qual é o objetivo de um cidadão, embora ruim de nascença, ruim que nem cobra, ruim como a própria ruindade, ao praticar tanta maldade?

O que se purgava naquela latrina fedorenta, o que se pagava pela dor abdominal constritora de uma diarreia monstruosa, eram os crimes de genocídio e maldade pura.

Assim, o semidespido semidefunto se queixaria sempre, eternamente culpado e sem remissão.

Compreenderam os amigos, atordoados, estarem diante do horrível genocida Jair Messias, sentado solitário naquele vaso carcomido, pagando aos pouquinhos, com a dor amaldiçoada que lhe revolvia as tripas, o crime atroz do genocídio, o inafiançável e imperdoável crime da maldade pura e sem sentido.

Há quanto tempo pagava em dor e caganeira seu horroroso crime, cometido contra uma nação inteira? O genocida Bolsonaro, sentado na latrina velhíssima, agora modelado na decadência da senectude, era o mesmo que, na Terra, continuava a cometer os mais terríveis crimes, sem dor, sem compaixão, sempre cruel e insensível, incapaz de sair da casca de si mesmo e compreender, minimamente, seu irmão, O OUTRO.

(No próximo capítulo: debatendo o anúncio para vender o Rio de Janeiro.)

Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Sebastiao Nunes

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