Redução do Encarceramento – Diante do colapso, não há o que se comemorar, por João Marcos Buch

O fato incontroverso é que o sistema prisional continua em colapso, com muito mais presos para vagas, vide decisão na ADPF 347 pelo STF - estado de coisas inconstitucional das prisões brasileiras.

Comissão de Segurança Pública do Senado aprova mudança na progressão de pena e discute celas especiais para a população LGBTQIA+ nos presídios. Foto: Agência Brasil

Redução do Encarceramento – Diante do colapso, não há o que se comemorar

por João Marcos Buch

Dados coletados pelo G1 (aqui), dentro do Monitor da Violência, tendo como base informações oficiais dos estados e do Distrito Federal, indicam que teria havido uma pequena diminuição da população carcerária, que atualmente alcançaria o número de 687,5 mil pessoas, dentre as quais o montante de presos em caráter provisório, que estaria por volta dos 217 mil.

Nas contas não teria entrado o número de presos em regime aberto (domiciliar), o que elevaria o total em várias dezenas de milhares. E, pelo visto, também não entraram aqueles em livramento condicional ou sursis, tampouco os recolhidos em delegacias. Ou seja, os números se referem a pessoas recolhidas em unidades prisionais.

Já o número de vagas seria de 440,5 mil, ensejando um déficit de mais de duas centenas de milhares.

Não há o que se comemorar, aliás, estamos bem longe de qualquer comemoração.

Inicialmente, é preciso observar que os dados constantes na matéria podem não retratar exatamente o contingente de presos, que talvez supere a marca dos 800.000, haja vista que, segundo a matéria, a coleta foi via assessorias de imprensa junto às secretarias de Administração Penitenciária.

Como é notório, nem sempre esses órgãos têm a noção concreta dos números prisionais, sendo certo que um levantamento in loco resultaria num número muito maior de encarcerados (como juiz da execução penal, já fiz levantamentos nesse sentido e sempre o número foi maior que os oficialmente relatados).

Mas, superada essa questão numérica, o fato incontroverso é que o sistema prisional continua em colapso, com muito mais presos para vagas, vide decisão na ADPF 347 pelo STF – estado de coisas inconstitucional das prisões brasileiras.

Não é de hoje que seres humanos são mandados para a cadeia, diga-se de passagem, por responsabilidade também do Poder Judiciário, com ordens prisionais que, muito embora não constem no papel, condenam o preso a dormir no chão, a ter que afastar as baratas do rosto, a arrancar um dente com as próprias mãos, a ser infectado por tuberculose, leptospirose e agora por Covid-19.

As perguntas são: por que esse caos não acaba? Por que mantemos sob nossas vistas a tragédia da violação aos direitos humanos nas prisões? Quando teremos um sossego a luta pela dignidade da pessoa humana?

Ouso apontar que alguns dos motivos para essa tragédia se encontram na falta de compromisso do estado para com políticas públicas inclusivas e de bem-estar social, de justiça social, bem como no uso da violência como método de controle e manutenção do status quo.

A criminologia de base social e a crítica explicam que em ambientes desestruturados, divididos em classes econômicas, em castas, marcados pela busca da felicidade em uma imposição geral de que só se admira quem ostenta bens materiais, com menosprezo da cultura e da ciência, num país marcado pelo racismo estrutural, o jovem que não possui condições e referências para se sentir pertencente, carente absoluto de oportunidades, evade-se da escola e parte para meios marginais de satisfação de seus desejos. Esses meios marginais, na atualidade, são buscados junto ao tráfico de drogas, armas, roubos e furtos.

Por outro lado, o estado permanece com sua necropolítica muito bem delineada, comparecendo para neutralizar esses jovens por meio de execuções sumárias ou encarceramento, onde a morte será mais lenta.

Tudo isso tem apelo e tem suporte da sociedade. Não saímos do século 19!

No Código Criminal de 1830 os legisladores determinaram que as penas de morte, açoite e galés deveriam ser obrigatoriamente aplicadas aos negros condenados por crimes. A justificativa era de que a mera prisão, considerando que eram escravos, não deveria ser melhor que a senzala.

Até hoje, o argumento segue essa nefasta lógica, não importando o que dizem a legislação e os princípios e diretrizes constitucionais, bem como os tratados e pactos de direitos humanos.

Ainda que não conste nos documentos oficiais, o Código Criminal de 1830 ainda é praticado e encontra ressonância no povo, para deleite do estado.

A classe média e a rica assinam embaixo dessa concepção, aquela porque acha que só pode enriquecer por méritos e essa porque se sente ameaçada e não quer dividir o bolo.

Por outro lado, para os brasileiros que vivem para se manter a si e sua família, sofrendo condições de pobreza, muitos em miséria e violência constantes, ceifados de melhor compreensão da situação em que se encontram, de que são eles o objeto do braço penal do estado, as prisões precisam ser piores e mais violadoras que a vida do lado de fora das grades.

E como os julgar por isso?

Em certa ocasião, em uma palestra para adolescentes, sobre superação da violência, direitos humanos e prisões, uma senhora, com uma vassoura na mão, que supus ser uma servente da escola e que acompanhou concentrada toda minha fala, fez ao final um relato profundo. Ela contou que seu filho tinha sido assassinado na porta de sua casa fazia dez anos e que não entendia como eu podia dizer que os presos deveriam ter direito a isso e aquilo se o filho dela não teve direito à vida. Ela desejava justiça.

Ouvindo aquela mulher, dei-me conta do quanto é difícil a vida dos mais vulneráveis. Tentei explicar a ela que, muito embora jamais pudesse sofrer algo igual, o que eu queria é que outras mães não tivessem seus filhos assassinados na porta de suas casas.

Depois na saída, ela se aproximou e me deu um abraço (ainda não havia pandemia), agradecendo por eu a ter ouvido. Apenas a abracei de volta, em silêncio.

É preciso dar um basta no holocausto prisional brasileiro. Os dados trazidos pelo G1, a parte inconsistências diante da dificuldade das próprias secretarias em ter informações fidedignas das prisões, mesmo que apontem leve queda na taxa de encarceramento no último ano, servem para mostrar que o superencarceramento é uma doença terrível, que corrói nosso tecido social e nossa humanidade.

Quando tomarmos consciência de que a violência só será vencida com justiça social, jamais com direito penal e com a guerra insana às drogas e ações espetaculosas em favelas, talvez tenhamos algo para comemorar.

João Marcos Buch – Juiz da Vara de Execuções Penais da Comarca de Joinville/SC

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

1 Comentário

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  1. O problema é que as prisões são “escolas do crime”. Não há nada de socio educativo lá. Prisão precisa educar o preso, ensinar trabalho, não pode ser um mero depósito. No ócio só resta conversar com os outros detentos, muitas vezes piores que eles. E as condições sub humanas força procurar “proteção” nas gangues, engrossando suas fileiras.
    Resumindo, o castigo é pior para a sociedade.
    E não, não estou defendendo criminosos. Apenas apresentando um fato, a prisão é uma pena de morte, que não está prevista no ordenamento jurídico. Morre lá, de doença ou maus tratos, ou morre fora, nas gangues e na criminalidade

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